WEIL, RISCOS, RAÍZES

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 20 de novembro de 1977

Segurança é uma necessidade vital para a alma. Segurança significa que a alma não está esmagada sob o peso do medo e do terror. Medo e terror, se convertidos em estados permanentes, são venenos mortais, seja quando causados pela ameaça da fome, perseguição policial, pela presença de um conquistador estrangeiro, probabilidade de guerra ou quaisquer outras calamidades.
Os senhores romanos costumavam pendurar um chicote na entrada de suas casas, à vista dos escravos, sabendo que a visão do instrumento repressor os reduziria ao estado de semimorte, indispensável à escravidão. Os egípcios antigos diziam que homem justo seria aquele que poderia afirmar convictamente ao morrer: "Jamais causei medo a ninguém".
Mesmo que o medo esteja escondido sob forma latente e seus dolorosos efeitos só raramente sejam vividos, continua sendo uma terrível doença. É a paralisia da alma.
Risco é uma necessidade vital da alma. A ausência de risco produz uma apatia que paralisa a alma de forma diferente do medo, porém com a mesma intensidade. Existem situações que produzem ebulições difusas sem contudo apresentar nenhum risco definido e que contêm os dois tipos de paralisia: a do medo e da apatia.
O risco é uma forma de perigo que provoca uma reação deliberada pois não ultrapassa os recursos e possibilidade da alma, a ponto de esmagá-la sob o peso do medo. Em alguns casos, o risco envolve aspectos lúdicos. Em outros, quando obrigações definidas e extremamente claras são apresentadas diante do homem, representa perfeito estímulo.
A proteção da humanidade contra o medo e o terror não implica absolutamente a abolição do risco. Implica, ao contrário, a permanente presença de uma certa dose de risco em todos os aspectos da vida social. A ausência de risco enfraquece a coragem, a ponto de deixar a alma sem a menor autodefesa contra o medo, desacostumando-a da necessidade dos imprevistos.
O que se quer do risco é que não seja transformado numa sensação de inexorabilidade ou fatalidade.
A honra é uma necessidade da alma. O respeito que se conceda a um ser humano em particular, mesmo satisfatório, não é suficiente para compensar o desrespeito com que, porventura, se trate o gênero humano. A dignidade e decência não se restringem a vivências singulares, mas à convivência ampla. Um bandido trata bem da sua família, mas, não obstante, humilha suas vítimas.
A opressão despreza a necessidade de honra. As conquistas subjugam honra e dignidade dos conquistados, ao mesmo tempo em que ensurdecem honra e dignidade dos conquistadores.
Estar aberta à vida é uma necessidade vital da alma. Não rejeitar mudanças, admitir o bafejo do novo, contrariar o conformismo são imposições do viver. A inércia estanca a criatividade. O rancor é uma forma de inércia, o terror é uma forma de inércia, a beligerância é uma forma de inércia. A busca da paz é uma forma dinâmica de viver.
A necessidade de criar e buscar raízes não poder ser confundida com a impassibilidade do medo. É uma necessidade vital para a alma.


Simone Weil (1909-1943), pensadora e escritora francesa, judia de nascimento. Sua morte foi tão estranha como sua vida: comovida e solidária com o sofrimento dos seus compatriotas sob a pressão nazista. Trabalhando em Londres para o governo francês no exílio, passou a recusar alimentos e remédios até que morreu de tuberculose. Teve contatos com o marxismo, lutou com os republicanos na guerra civil espanhola mas escapou, acabrunhada com a brutalidade que presenciou dos dois lados. Simone Weil pode ser considerada como liberal na medida em que se opõe tenazmente à opressão e ao totalitarismo, mas um detalhamento do seu pensamento político revela uma atitude conservadora. Um de seus apologistas foi T. S. Eliot. Sua tradição cultural é essencialmente judaica, assim como seu estoicismo, mas demonstrou grande amor ao Cristianismo, apesar de criticar severamente a Igreja. Todas as suas obras foram publicadas postumamente. Seus escritos políticos, notadamente "O Enraizamento", foram feitos por encomenda do governo francês no exílio como um anteprojeto de reconstrução nacional para o após-guerra. O tema acima foi adaptado da versão americana (Harper), "The Need for Roots".


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