CLAUSEWITZ E A GUERRA
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, terça-feira, 2 de maio de 1978
|
|
Muitas
almas filantrópicas imaginam que existe uma maneira artística
de desarmar ou derrotar o adversário sem excessivo derramamento
de sangue, e que é isto que se proporia conseguir com a
arte da guerra. Esta é uma concepção falsa,
que deve ser repelida, por mais simpática que possa parecer.
Em assuntos tão perigosos como a guerra, as idéias
falsas, inspiradas no sentimentalismo, de modo algum têm
a cooperação da inteligência. Quem usa a força
com crueldade, sem retroceder diante do derramamento de sangue,
por maior que seja, obtém uma vantagem sobre o adversário,
desde que ele faça a mesma coisa.
Desse modo, um dos lados força a mão do adversário,
e cada qual condiciona o outro à adoção de
medidas estremas cujos único limite é a força
de resistência oposta pelo contrário. O assunto deve
ser encarado dessa forma, já que tratar de ignorar o elemento
pela repugnância que provoca seria uma tentativa inútil
e até pior do que isto.
Se as guerras entre nações civilizadas são
menos cruéis e destruidoras que as das não civilizadas,
a razão reside na condição social dos Estados
considerados em si mesmos e em suas relações recíprocas.
A guerra surge, se delineia, se limita e se modifica de acordo
com essa condição e suas circunstâncias concomitantes.
Tais elementos, porém, não são partes da
guerra. Existem por si mesmos. Na filosofia da guerra, não
podemos, de forma alguma, introduzir algum princípio modificador
sem cair no absurdo.
Nas lutas entre os homens, intervêm, na verdade, dois elementos
diferentes: - o sentimento hostil e a intenção hostil.
Escolhemos o último destes dois elementos como a marca
de nossa definição, porque é o mais comum.
É inconcebível que um ódio selvagem, quase
instintivo, exista sem a intenção hostil, enquanto
há casos de intenções hostis que não
estão acompanhados por nenhum hostilidade, ou, pelo menos,
por nenhum sentimento hostil predominante.
Entre os selvagens prevalecem as intenções de origem
emocional; entre os povos civilizados, as inspiradas pela inteligência.
Mas esta diferença não reside na natureza intrínseca
da selvageria ou civilização, mas em suas circunstâncias
e em sua instituições. Não existe, portanto,
necessariamente, em todos os casos, mas prevalece na maioria deles.
Numa palavra: até mesmo as nações mais civilizadas
podem inflamar-se pela paixão, num ódio recíproco.
Vemos, assim, como estaríamos longe da verdade se atribuíssemos
a guerra entre homens civilizados a atos puramente racionais de
seus governos, e se a concebêssemos como sempre liberta
de toda paixão, de modo que, em consequência, não
seria necessária a existência física dos exércitos,
bastando apenas as relações teóricas entre
eles, ou o que seria uma espécie de álgebra da ação.
A teoria começava a orientar-se neste sentido, quando os
acontecimentos da última guerra (a de Napoleão)
nos indicaram um caminho melhor. Se a guerra é ato de força,
as emoções nela estão necessariamente envolvidas.
Se as emoções não dão origem à
guerra, ela exerce, contudo, uma ação maior ou menor
sobre elas, e o grau da reação depende, não
do estado da civilização, mas da importância
e duração dos interesses hostis.
Portanto, se vemos que os povos civilizados não matam os
prisioneiros, nem saqueiam as cidades, nem arrasam os campos,
isto se deve a que a inteligência desempenha um papel importante
na condição da guerra, e lhes ensinou a aplicar
sua força recorrendo a meios mais eficazes que os dessas
brutais manifestações do instinto.
A invenção da pólvora e o constante aperfeiçoamento
das armas de fogo mostram por si mesmos, com suficiente clareza,
que a necessidade inerente ao conceito teórico da guerra
- a de destruir o inimigo - não foi de forma alguma debilitada
ou desviada pelo avanço da civilização.
Repetimos, portanto, nossa afirmação: - a guerra
é um ato de força, e não há limite
para a aplicação dessa força. Cada adversário
força a mão do outro, e isto redunda em ações
recíprocas, teoricamente ilimitadas. Esta é a primeira
ação recíproca que se nos apresenta, e o
primeiro extremo.
O desarmamento do inimigo é o propósito da ação
militar, e queremos mostrar que isto é necessariamente
assim, pelo menos em teoria. Para que nosso oponente se submeta
à nossa vontade, devemos colocá-lo numa posição
mais desvantajosa do que aquela que implica o sacrifício
que dele exigimos. As desvantagens de tal posição
não terão de ser naturalmente transitórias
- ou ao menos - não deverão parecer transitórias.
Pois, ao contrário, nosso oponente acabaria esperando um
momento mais favorável, e se negaria a render-se.
Como resultado da continuação da ação
militar, toda mudança em sua posição deve
conduzi-lo, pelo menos teoricamente, a posições
cada vez menos vantajosas. A pior posição a que
pode ser levado um beligerante é a de seu completo desarmamento.
Portanto, se por meio da ação militar obrigarmos
nosso oponente a fazer nossa vontade, devemos, ou desarmá-lo
de uma vez, ou então colocá-lo numa posição
tal qual se sinta ameaçado de perder suas armas de hora
para outra.
Daí se conclui que desarmar ou destruir o inimigo - seja
qual for a expressão que prefira - deve ser sempre o propósito
da ação militar. Enquanto o adversário não
estiver derrotado, plenamente derrotado, é preciso temer
que nos possa derrotar.
|
|
Carl
Von Clausewitz, general prussiano, é considerado o mestre
maior da arte da guerra. Sua lições de tática
e estratégia vão, porém, além dos exercícios
militares propriamente ditos, para se constituírem, inclusive,
numa profunda reflexão sobre a filosofia da guerra e da paz.
Essa reflexão contém observações éticas
que são válidas para a formação militar
em todo tempo, mesmo na ocorrência do que, em nossos dias,
veio a chamar-se de "guerra interna". Para Clausewitz,
a destruição física do inimigo deixa de ser
ética, quando ele pode ser desarmado em vez de morto. Clausewitz
dirigiu a Escola Militar, tomou parte na batalha de Waterloo e morreu
de cólera. O texto, que hoje publicamos é de seu famoso
tratado "Da Guerra", parte mais importante de sua obra,
publicada por sua mulher, depois de sua morte.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|