VOLTAIRE E A GALHOFA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 09 de fevereiro de 1978
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Amor:
Aqui, é preciso recorrer ao físico - é o
estofo da natureza. A maior parte dos animais experimenta prazer
por um só dos seus sentidos e, desde que o apetite se satisfaz,
tudo acaba. Nenhum animal a não ser o homem conhece o abraço
- o corpo inteiro é sensível. Todos os outros sentimentos
se aliam depois com amor, como todos os metais fazem liga com
o ouro: a amizade, a estima, os talentos do corpo e do espírito.
O amor-próprio, principalmente, aperta esses laços.
Orgulho: Um maltrapilho dos arredores de Madrid pedia esmolas
com grande dignidade. Um transeunte, então, disse: "Não
tens vergonha de exercer esta infame atividade quando podias trabalhar?"
"Senhor", respondeu altivamente o mendigo, "estou
lhe pedindo uma esmola e não conselhos". E tendo dito
isto deu-lhe as costas com toda a empáfia castelhana. Mendigo
orgulhoso esse, por amor de si mesmo pedia esmola e ainda por
amor a si mesmo não permitia que lhe fizessem uma reprimenda.
O amor-próprio é a base de todos os sentimentos
e a razão de todas as ações. É o instrumento
de nossa conservação.
Igualdade: O que um cão ou cavalo deve a outro? Nada. Nenhum
animal depende de seu semelhante. Mas o homem recebeu uma luz
divina chamada razão. E qual o resultado desta dádiva?
Tornou-se escravo em toda a parte. Se a terra fosse o que deveria
ser, se o homem encontrasse subsistência fácil e
proteção farta é claro que seria impossível
a um homem escravizar outro. Nestes casos, os Gengis-Khan e Tamerlões
não teriam servidores a não ser os próprios
filhos, que haveriam de ser pessoas suficientemente educadas para
ajudá-los na velhice. Nesse estado natural, a dominação
seria uma quimera, um absurdo: por que procurar servidores se
não há necessidades de serviço? Todos os
homens seriam necessariamente iguais se não tivessem necessidades.
Não é desigualdade a infelicidade real, é
a dependência. Veja-se um exemplo: uma família cultiva
um torrão fértil e outras duas vegetam em terra
ingrata. É evidente que as duas famílias pobres
irão servir à rica ou destruí-la. A família
que se puser a serviço dos ricos dará origem aos
criados, servos e operários. A que desafiar os ricos será
abatida - eis a origem dos escravos.
Opressão: Infelizmente nem todos os oprimidos são
infelizes.
Milagres: Segundo o sentido mais forte da palavra, milagre é
uma coisa admirável. Assim sendo, tudo é milagre.
A ordem da natureza, o mecanismo da vida, o imutável. De
acordo com a ciência corrente, porém, chamamos de
milagre a violação das leis divinas e eternas. Assim
sendo, milagre é, a um tempo, o imutável, que se
admira, e o violável. Convém pensar sobre isto.
Arbítrio: Em várias ocasiões pretendeu-se
impedir que um cidadão saísse da região onde
o acaso o tinha feito nascer. A significação dessa
lei é patente: esta terra é tão ruim e tão
mal governada que se proíbe cada um de seus habitantes
de sair dela, a fim de que não venha a ficar desabitada.
Outra deve ser a maneira de agir: dar ao naturais do país
vontade de permanecer e torná-lo convidativo aos estrangeiros.
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François-Marie
Arouet (1694/1778), que se apelidou Senhor de Voltaire,
pensador e crítico mordaz da sociedade francesa. Filho da
alta burguesia, seus talentos levaram-no à sátira
e, desta, à Bastilha. Aos 30 anos, era considerado a glória
teatral na França, mas um novo episódio em que seu
agudo senso crítico feriu as suscetibilidades dos poderosos
levou-o novamente ao famoso presídio. De lá saiu convertido
num lutador contra as tiranias e a opressão. Por um período
pensou servir a um "déspota esclarecido", tendo
escolhido Frederico da Prússia. Mas desencantou-se. Sua estada
em Potsdam convenceu-o de que "os costumes dos reis filósofos
assemelham-se enormemente aos dos reis tiranos". Foi para Suíça,
mas no paraíso republicano foi perseguido por razões
religiosas. Graças à sua fortuna, montou um esquema
de quatro casas (duas na França e duas na Suíça)
e assim pôde, em rodízio, escapar das várias
perseguições que se armavam contra ele. Cultivava
as doenças mas resistiu a todas, morrendo com 84 anos. Empreendeu
várias cruzadas em favor dos direitos humanos, que permitiram
sua volta gloriosa à pátria como herói nacional.
Anticlerical, foi o primeiro a tentar compor uma história
universal sem considerar a participação divina e sobrenatural.
De suas obras literárias, a mais famosa é "Candide".
O texto contém alguns verbetes resumidos do seu "Dicionário
Filosófico" (em dois volumes).
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