VICENTE E O INDIVÍDUO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 09 de fevereiro de 1978
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Uma
das formas conspícuas da liberdade é e será
sempre a imaginação criadora da pluralidade de suas
manifestações possíveis. A imaginação
constitui o grande poder emancipador de todos os confinamentos
e situações opressivas, o poder que nos faz empreender
grandes viagens, aventuras e desventuras na exiguidade das quatro
paredes de um quarto. Assim como podemos ser cortados em nossa
liberdade, podemos também padecer em nossa imaginação
e não seremos mais donos de nosso devaneio. Na medida em
que pela posição sócio-estatal do despotismo
ou pela prepotência de um princípio ideológico
oprimente, nos compaginamos com uma forma existente - somos o
proletário, os camaradas ou o homem solitário -
fenecemos em nossa liberdade e não gozamos mais de qualquer
exuberância em relação às coisas. Vicejamos,
então, vítimas do condicionamento sociológico,
somos uma ilustração da sociologia do conhecimento,
pois expressamos unicamente as perspectivas e conceituações
próprias de nossa classe, grupo ou casta social.
Somente o indivíduo no gozo de sua liberdade individual
pode se desembaraçar e descompaginar da força oclusiva
das representações e ideogramas de curso forçado
do âmbito social. Somente o indivíduo transcendendo-se
a si mesmo e à totalidade das coisas pode se constituir
em espaço de libérrima manifestação
gradativa das coisas. Existe, portanto, uma interna conexão
entre liberdade individual e conhecimento, pois o autêntico
conhecimento só pode se constituir quando o indivíduo
pode olhar desembaraçadamente para as alternativas representações
do mundo.
Eis que a defesa da vida individual e do destino do indivíduo
na sociedade assume uma importância histórico-cultural
inigualável. Aparentemente, somos uma simples referência
e um ponto correlativo de nossa existência social, uma concreção
das possibilidades do contexto global; em verdade gozamos de uma
faculdade de superação que permite referir-nos ao
que não existe no campo da res gesta. Georg Simmel afirma
justamente que na anteposição eterna entre a vida
produtiva e os produtos fixados e estereotipados dessa vida coligia-se
o drama fundamental da existência. A vida tende a se expressar
em formas - estilos artísticos, pensamentos, formas sócio-políticas,
etc. - mas, uma vez exteriorizada, não se reconhece mais
em suas produções e entra em luta com as formas
assumidas.
A exteriorização equivaleria a um estranhamento
ou alienação essencial, sendo seu destino agir sempre
contra si mesma, numa espécie de auto-atividade. A vida
insurgindo-se contra a vida, o produzir contra seus produtos,
a ação contra o agido traduziria a índole
própria da dinâmica existencial. A satisfação,
descansar no atingido, a mera fruição de uma vida
plena e reconciliada seriam meros momentos fugidios nesse movimento
eterno. O repouso pertenceria ao movimento, ao ir além
da vida, sendo movimento mitigado, ao ir-além da vida,
sendo movimento de grau zero, mas ainda movimento.
A experiência nos demonstra que efetivamente é dos
focos convulsivos da vida individual que emana essa força
da negatividade criadora. Existe em nós enquanto indivíduos
a disposição de "dançar além
de todas as coisas", de nos pormos como não-forma,
como trans-forma, como fontes de originalidade absoluta. Só
o indivíduo representa esta transcendência, de pensar
além o pensado, de querer além do querido, de sentir
além do sentido. Um problema de distinta natureza e que
não nos interessa particularmente ao analisar o papel do
indivíduo na sociedade é de sondar se a liberdade
individual não traduz um parágrafo de uma liberdade
meta-humana.
De qualquer maneira, é sempre o indivíduo o destinatário
desde apelo do ser, do ser compreendido radicalmente como "offen-heiut",
como abertura eterna de possibilidades historiáveis no
mural da história. Através da trajetória
singular de uma vida e de suas operações próprias,
as novas tendências da vida debruçam-se sobre o cenário
mundial. É o indivíduo que desenha sofridamente
essas configurações da vida em trágica oposição
com o espírito social e suas estratificações
rígidas. O imperativo da via individual significa, portanto,
um sentido de disponibilidade para a imaginação
divina que governa o destino da Terra... A sociedade, como organização
sistemática, como supressão da liberdade na regra
objetiva do ser, é a suprema alienação e
desfigurante catástrofe do homem, o confisco de sua essência
genuína numa idolatria do objeto social. Como vemos, o
homem não é objeto, e como tal não pode ser
tratado ou manipulado.
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Vicente
Ferreira da Silva estaria apenas na casa dos 40 anos quando
morreu, em terrível acidente entre Santos e São Paulo,
quando seu carro foi esmagado por uma jamanta. Isto, em 1963. Os
que se dedicam, neste país, ao estudo da filosofia são
unânimes em reconhecer que nunca tivemos no Brasil vocação
tão alta e tão pura de filósofo como Vicente.
Alguns dos mais importantes filósofos europeus voltaram-se
com entusiasmo para a grandeza e a originalidade de seu pensamento,
como Julian Marias, Ernesto Grassi, Bagolini e Aldo Testa. E, ainda
agora, Bachelard faz do pensamento de Vicente o verdadeiro roteiro
de um de seus livros. Além dos fragmentos publicados na revista
que fundou, com Milton Vargas, com sua mulher Dora Ferreira da Silva,
Heraldo Barbuy e outros, uma sociedade de filosofia de São
Paulo, sob direção de Miguel Reale, publicou importante
volume de sua obra. É de um trabalho publicado em 1963 o
texto que hoje divulgamos, em seleção de Gerardo Mello
Mourão.
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