TURGOT E O PROGRESSO

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 27 de janeiro de 1978

Não se deve supor que nos tempos de decadência nem nos tempos de tirania e obscurantismo, que às vezes se sucedem aos séculos mais brilhantes, o espírito humano fique incapacitado para o progresso. As artes mecânicas, o comércio, os usos da vida civil fazem nascer uma multidão de reflexões que se difundem entre os homens, se misturam com a educação e crescem de uma geração para outra. Tempos mais felizes se preparam, lentamente, é certo, mas com a inexorabilidade natural dos rios que às vezes se ocultam sob o solo, para depois reaparecerem mais vigorosos pela força das águas captadas no seio da terra.
Uma arte, uma vez inventada, chega a ser um objeto de comércio que se mantém por si mesma. Não se deve recear que a arte de fazer veludo, por exemplo, se perca, enquanto houver gente para comprar este produto. As artes mecânicas, portanto, sobrevivem no meio da decadência das letras e do bom gosto. De forma que o progresso material não quer dizer que um país não esteja vivendo uma época de decadência espiritual e moral ou um sombrio período de obscurantismo e tirania.
Apesar da ignorância que reinou na Europa e no Império grego a partir do século V, as artes mecânicas se enriqueceram com mil descobrimentos novos, sem que haja desaparecido nenhuma delas que tenha importância. Sem que nenhuma delas se tenha perdido.
A marinha se aperfeiçoou, e também a arte do comércio. Pois a esse século se deve o uso das letras de câmbio, a ciência da manutenção de uma escrita comercial, que é a forma mais perfeita da contabilidade. O papel de algodão foi inventado em Constantinopla e o de trapos no Ocidente, assim como vidro, as lentes, a arte de fazer espelhos, os óculos, as bússolas, a pólvora, os moinhos de ventos e de água, os relógios e uma infinidade de outras artes ignoradas na Antiguidade.
A arquitetura nos oferece um exemplo da independência recíproca entre o gosto e a mecânica nas artes. Não há edifício de gosto pior do que as construções góticas, que são as mais audaciosas e que exigiram maior trabalho e engenho para sua execução. É certo que esse engenho pode ter sido o coroamento de uma série de experiências, pois as ciências matemáticas estavam então na infância, e a resistência das abobadas e dos tetos não se podia calcular com precisão.
Foi necessário que essas artes se cultivassem e se aperfeiçoassem para que pudessem nascer a verdadeira Física e a Alta Filosofia. Chegaram, finalmente, às condições que possibilitaram experiências exatas e demonstrativas. Sem a invenção das lentes, nunca se teria podido calcular as causas dos movimentos dos astros. Sem a das bombas aspirantes, nunca se teria descoberto o peso do ar.
O gosto pela técnica pode perder-se por uma quantidade de causas puramente morais. Um espírito de frouxidão e preguiça difundido sobre uma nação, o pedantismo, o desprezo pelos homens de letras, a extravagância de critério dos governantes, a tirania e a anarquia - são causas dessa corrupção contra o progresso.
O mesmo não ocorre com as ciências especulativas. Enquanto sobreviver a língua em que estão escritos os livros e enquanto houver um certo número de homens de letras, a Humanidade não se esquecerá do que aprendeu anteriormente. É possível que não se aperfeiçoem, então, as ciências, porque poucos homens terão condições de dedicar-se a elas. Mas nem assim se perdem por completo. Os retóricos que passaram para a Itália depois da tomada de Constantinopla, por exemplo, sabiam tudo que se tinha sabido na Grécia antiga.
Faltavam-lhes, é certo, o estímulo. Faltava-lhes a crítica. Eram apenas sábio. Mas isto é o essencial, pois a ciência aplicada é apenas uma decorrência da sabedoria pura e desinteressada.
Já a invasão dos bárbaros no Oriente foi mais funesta. Aniquilando a língua latina, fizeram com que se perdesse o conhecimento dos livros escritos nesse idioma. E teríamos perdido por completo esses conhecimentos se os monges não nos houvessem conservado uma boa parte desses livros.
As artes, porém, persistiram, apesar dessa calamidade geral. Para destrui-las, só com golpes mais violentos. Apenas os turcos, na ferocidade de suas conquistas, puderam provocar uma regressão da técnica. Esse fato deve ser atribuído menos à sua religião, que não impediu que os árabes da Espanha fossem altamente instruídos em relação a seu tempo, do que à natureza tipo despótico do governo que praticavam.


Jacques Turgot (1727-1781) estudou na Sorbonne e dedicou-se a estudos econômicos e financeiros. Era um fisiocrata, partidário da Ilustração e foi colaborador da Enciclopédia. Quando o grande problema da França era a economia, Luís XVI o nomeou ministro da Fazenda. Seu desempenho foi brilhante, mas os aristocratas se opuseram a suas reformas e teve que se demitir. Fez estudos importantes sobre história e geografia política, e é considerado o criador da idéia de Progresso, o grande conceito que, durante mais de um século, serviria para a interpretação da história, e que foi posteriormente desenvolvido por Condorcet. É do plano de seu segundo discurso sobre a História Universal o texto que hoje publicamos.


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