TUCÍDIDES E A CONSTITUIÇÃO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 15 de fevereiro de 1978
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O
regime político que nós seguimos não tem
inveja das leis dos povos vizinhos; ao contrário. Pois
temos razões maiores para servir-lhes de exemplo do que
para imitá-los. O nome de nosso regime é democracia.
Isto porque o governo do Estado não é privilégio
de uns poucos, mas direito da maioria. Com referência a
questões entre as pessoas, são resolvidas de acordo
com o principio de que são todas iguais perante a lei.
Quanto ao tratamento social na medida em que cada um tem a que
pertence que lhe dá preferências na coisa pública,
mas os méritos que possua. A falta de bens materiais não
exclui ninguém do direito de ser escolhido para servir
à cidade.
Administramos os assuntos da comunidade e as coisas menores da
vida quotidiana sem usar violência para com o próximo
e sem ficar censurando as coisas que cada um entende fazer. Vivemos
nossa vida particular sem praticar repressões contra nossos
semelhantes. Na vida pública, obedecemos às leis,
e através delas é que respeitamos os que estão
no poder. Atendemos, especialmente, as leis que foram estabelecidas
para socorro dos oprimidos, e as que, mesmo sem serem escritas,
causam em quem as transgredir uma vergonha pública.
Distinguimo-nos de nossos adversários, em relação
às coisas da guerra, no seguinte: nossa cidade é
uma cidade aberta, e dela não proscrevemos nem a presença
nem as idéias dos estrangeiros, pois confiamos, acima de
tudo, na coragem que brota de nosso próprio espírito
para a ação.
Na educação, os outros obrigam os jovens a penosos
exercícios, como se isto fosse fundamental para alcançarem
a força viril. Não precisamos disso para enfrentar
os perigos, valendo-nos sobretudo da força do espírito,
e nossas confrontações com os lacedemônios
são uma prova disso.
Amamos o beijo com simplicidade e estimamos a cultura sem o amolecimento
dos costumes. A riqueza, para nós, é um instrumento
de trabalho e produção, e nunca um objeto de ostentação.
A pobreza não é para nós uma vergonha, pois
o que é vergonhoso é a miséria causada pela
indolência.
As pessoas que tratam dos problemas familiares e das coisas políticas,
como as que apenas se dedicam a suas ocupações profissionais,
têm sempre um conhecimento razoável e suficiente
dos assuntos da vida pública. Somos o único povo
que entende que quem não participa das preocupações
gerais não é apenas um indiferente, mas sobretudo
um inútil. Acreditamos que as questões públicas
devem ser discutidas por todos. Por isso as estudamos e debatemos
entre nós, certos de que a palavra nunca prejudica a ação,
senão quando as pessoas não aprendem a servir-se
dela para discutir o que tem de ser feito pelo povo.
Diferentemente dos outros povos, sempre ousamos tudo em matéria
de política, embora meditando profundamente sobre nossos
projetos. Outros povos apenas têm a coragem da ignorância,
e é com esse tipo de coragem que calculam e planejam tudo
e perdem em seus planejamentos. Com razão, são mais
corajosos e mais eficientes os que debatem tudo com liberdade,
e ficam conhecendo os riscos e os prazeres, adquirindo, assim,
condições de enfrentar o perigo.
Somos os únicos que ajudamos alguém, não
tanto como a mira nas vantagens, mas com aquela confiança
que é própria dos homens livres. Em resumo, posso
dizer que esta cidade, no seu conjunto, por sua Constituição,
é a escola da Grécia. E cada um de nós em
particular, segundo me parece, se revela mais capaz para todas
as tarefas da vida social, dando provas em tudo da excelência
de nosso preparo, com eficiência e com graça do espírito.
Isto, porque nosso povo, cada um de nós, é a própria
força da cidade. E o que estou dizendo não é
um discurso enfeitado para as circunstâncias, mas a própria
verdade dos fatos, uma vez que a cidade possui as qualidades que
nós mesmos possuímos.
Grandes são as provas de nossa força, e todas estão
comprovadas. Seremos, assim, admirados pelos contemporâneos
e pelas gerações futuras. Não precisamos
de um Homero para celebrar nossa grandeza, nem de louvadores que
recorram, à ficção para descrever a verdade
de nossa vida de povo.
Foi por uma cidade assim que pereceram nobremente em muitos combates
os que julgaram de seu dever impedir que o povo fosse privado
de seus direitos. E os que hoje estamos aqui, queremos também,
como é natural, lutar e sofrer pela mesma causa. Alonguei-me,
com razão, ao falar sobre nossa cidade, pois o nosso combate
é em favor dos que gozam e dos que ainda não gozam
desses privilégios. Aqueles que travam este combate merecem,
sem dúvida, que eu celebre aqui e agora a sua honra.
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Tucidides,
nascido por volta do ano de 469, A.C. e morto em torno do ano 398,
era de origem nobre. Responsabilizado pela derrota de Delion, acusado
de traidor da pátria, preferiu não se defender, e
passou vinte anos no exílio, onde escreveu sua obra monumental
sobre a Guerra do Peloponeso, não terminada, e concluída
por Teopompo e Xenofonte. Vinte anos depois, Atenas foi buscá-lo
em triunfo. Foi o primeiro a adotar o costume de introduzir discursos
na História. É admirável sua fidelidade aos
fatos, observada até no rigor com que transcreve documentos
de seu tempo. Não levou em grande conta o poder dos deuses
e foi um racionalista em sua interpretação da História.
É de sua história da Guerra do Peloponeso o texto
que hoje publicamos, em tradução do original grego
de Gerardo Mello Mourão.
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