TOCQUEVILLE E A REPÚBLICA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, terça-feira, 15 de novembro de
1977
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Senhores,
sinto temor pelo futuro. Doenças e medo estão contaminado
as mentes. Pela primeira vez, em 15 ou 16 anos, sinto sensação
e consciência da instabilidade e este é o sentimento
da véspera da revolução. Atribuir, como o
fez recentemente o ministro das Finanças, a raiz de nossos
males a acidentes e circunstâncias, é simplesmente
transformar em causa os sintomas da doença. Acredito piamente
que nossa moléstia origina-se em razões mais fundas
do que nas ocorrências fortuitas mencionadas pelo ministro.
E o que está acontecendo, na realidade, nestes dias sombrios.
Percebo que a compostura pública e o espírito público
estão num estado calamitoso. É minha opinião
que o governo contribui de forma decisiva para esta perigosa situação.
(aplausos)
Senhores, quando olho para a classe que governa, a classe que
tem direitos políticos, e olho a classe dos governados
e percebo o que se passa em ambas, perturbo-me. Na classe dominante
vejo-a dominada exclusivamente pelos apetites pessoais, ambições
materiais e interesses particulares. Meus caros colegas, aqui
nesta casa nos últimos dez ou quinze anos aumenta o número
daqueles que já não votam por razões políticas
mas apenas guiados por seus interesses individuais. E aqui representamos
exatamente a classe dirigente. Percebo igualmente a ascensão
de uma nova moralidade: aqueles que conservam seus direitos políticos
agem como se isto fosse um privilégio pessoal e não
uma obrigação pública, uma responsabilidade.
E o que acontece na esfera pública naturalmente acontece
na vida particular. Vejam esta onda de escândalos, de crimes,
ofensas, esta brutalidade generalizada que unifica encarregados
da ordem com os desordeiros. Quando isto ocorre em tal escala,
não é razão para se assustar? A vida nacional
reflete sempre a vida individual. A corrupção, o
vício e a falta de nobreza, que campeiam nas ruas e nas
casas, é a mesma que está instalada na corte e na
administração. (protestos da direita).
Não o digo como moralista, mas como político. Sabem
os senhores qual a causa verdadeira desta mudança nos comportamentos
individuais tornando-os corruptos? É a corrupção
nos comportamentos públicos. Se a imoralidade domina as
grandes ações, ela se projeta igualmente nas pequenas
ocorrências. Quando uma nação consegue cunhar
dois tipos de moralidade - a moralidade pública e a moralidade
privada - então a moralidade desta nação
periga.
Alguns clamam que não há perigo a vista; não
há sintomas de desordens nem revoltas. Enganam-se, o espírito
da revolta engajou-se profundamente no espírito da nossa
gente. Vejam o que acontece no meio da classe operária.
Sim, estão tranquilos, não estão dominados
por nenhuma febre política. Mas os senhores não
conseguem distinguir que agora as paixões políticas
transformaram-se em agudos problemas sociais? Não percebem
os senhores que agora entre o povo não mais se discute
se deve-se ou não abandonar tal ou qual lei, esta ou aquela
administração? Agora, fala-se que todos os que estão
no poder são incompetentes e indígnos de confiança.
Agora, não se fala mais em política mas na propriedade.
E quando este estado de espírito se aprofunda nas massas,
cedo ou tarde geram-se perigosas revoluções. Estamos
senhores, à beira de um vulcão. (protestos, várias
reações)
O governo veio aos poucos nos últimos anos readquirindo
todo o poder absolutista, exercendo todas as prerrogativas insinuando-se
em todas as frestas enquanto vão minguando mais e mais
os princípios da liberdade e os direitos individuais. Não
será isto a causa do descrédito, do desinteresse,
da desesperança e do desânimo?
Falo sem amargura e sem interesse partidário. Se por ventura,
me indigno, faço-o sem rancor. Preocupa-me o futuro. A
vida dos monarcas estará atada por fios mais fortes do
que as vidas dos demais homens? E até quando?
Fala-se em reformas. Estou inclinando a acreditar que estas reformas
legislativas não são apenas úteis mas necessárias.
Mas eu não sou tão louco a pensar que a mera troca
de leis reforme um país. Não é o mecanismo
das leis que decide os destinos do mundo. O que decide acontecimentos,
senhores, é o espírito do governo. Mantenham suas
leis, se não querem aceitar as reformas propostas, fiquem
no poder, se não querem uma renovação de
homens, mas pelo amor de Deus, mudem o espírito do governo.
(fortes aplausos)
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Alexis
de Tocqueville (1805-1859), advogado e político francês
que foi aos EUA em missão oficial por nove meses (1831-32),
disso resultando uma monumental investigação, "Democracias
na América", a mais profunda avaliação
dos sistema democrático norte-americano até hoje feita.
O livro foi nos 20 anos seguintes um autêntico "best-seller".
Influenciando profundamente o pensamento político europeu.
John Stuart Mills considerou-o a melhor obra filosófica jamais
escrita sobre a democracia representativa. O texto acima, pouco
conhecido, é o resumo de um discursos (com anotações
dos escribas) pronunciado por Tocqueville em janeiro de 1848 na
Câmara dos Deputados francesa, às vésperas da
proclamação da Primeira República. Não
é propriamente um texto republicano, mas uma dramática
descrição da vida nacional francesa um mês antes
dos tumultos populares, que antecederam a República.
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