TILLICH E A CORAGEM

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 23 de novembro de 1977.


Coragem é usualmente descrita como o poder da mente para vencer o medo. O significado do medo parece por demais óbvio para merecer inquérito, porém nas últimas décadas a psicologia profunda, em cooperação com a filosofia existencialista, conduziram a uma decisiva distinção entre medo e ansiedade, Análises sociológicas do período atual assinalam a importância da ansiedade como fenômeno de grupo. Ansiedade e medo têm a mesma raiz ontológica, mas não são o mesmo na realidade
Medo tem objeto definido que pode ser enfrentado, analisado, atacado e tolerado. Pode-se agir sobre ele e, agindo sobre ele, participar dele mesmo sob a forma de combate. A coragem pode enfrentar cada objeto do medo, porque é um objeto e torna a participação possível. A coragem pode incorporar nela o medo produzido por um objeto definido porque este, embora assustador, admite nossa participação nele. Pode-se assim dizer que desde que haja um objeto de medo, o amor —no sentido da participação
— pode dominar o medo. Este é o mecanismo da coragem.
Mas não acontece o mesmo com a ansiedade, porque esta não tem objeto. Seu objeto é a negação de todo objeto. Portanto, em relação a ela, amor e participação são impossíveis. Aquele que está em ansiedade está entregue a ela, sem apelação.
Poucos conceitos têm tanta utilidade para análise da situação humana como a coragem. Coragem é uma realidade ética, mas se enraíza em toda a extensão da existência humana e, basicamente, na estrutura do próprio ser.
Uma da primeiras discussões filosóficas sobre a coragem encontra-se no diálogo de Platão, "Laches". Nikias, o general, sendo um líder militar, tenta defini-la ao dizer significativamente que "coragem é conhecimento do que deve ser temido e o que deve ser enfrentado". Assim, para se saber o que é coragem seria preciso "ter um conhecimento referente a todo o bem e todo o mal, sob todas as circunstâncias".
O fracasso em encontrar uma definição de coragem como uma virtude entre as virtudes humanas revela um problema básico da existência humana. Mostra que uma compreensão da coragem pressupõe uma compreensão do homem e de seu mundo, sua estrutura e seus valores. A questão ética da natureza da coragem conduz de forma inevitável à questão ontológica da natureza do ser.
Examinando a história do pensamento ocidental, encontram-se os dois significados de coragem: como ato humano é um conceito ético. Como a auto-afirmação do ser, é um conceito ontológico. Em Platão se relaciona como elemento da alma chamado de "Thymos" que fica entre elemento intelectual e sensual do homem. É o esforço não pensado em prol do que é nobre. Aristóteles conjuga o nobre com o belo ("kalos"). A língua alemã tem dois vocábulos para expressar coragem: "Tapfer" e "Mutig". O primeiro significa firme, bravo, na acepção militar, o segundo deriva de "mut", ânimo, o movimento da alma sugerido pela palavra inglesa "mood", dizendo respeito ao coração, núcleo pessoal. A palavra franco-inglesa "courage" deriva-se de "coeur", coração.
S. Tomás de Aquino une coragem à sabedoria. A coragem perfeita seria um dom do Espírito Santo. Spinoza dizia: "Por coragem eu quero dizer o desejo com o qual cada homem se empenha em preservar o seu próprio ser, em concordância com os ditames da razão". Nietzsche considerou o "guerreiro" como exemplo de coragem (que ele distingue do mero soldado). "O que é bom?, vos pergunto. Ser bravo, é bom" (em Zarastustra, 1,10).
Coragem é auto-afirmação, "a despeito de", isto é, a despeito daquilo que tende a impedir o eu de se afirmar. Ansiedade e coragem têm caráter psicossomático. São biológicas, tanto como psicológicas. Do ponto de vista biológico poder-se-ia dizer que medo e ansiedade são as ameaças do não-ser a um ser vivente, produzindo movimentos de proteção e resistência a esta ameaça. A auto-afirmação biológica implica na aceitação destas ameaças. Sem esta auto-afirmação a vida não pode ser preservada. Quanto mais força vital um ser possui, mais é capaz de afirmar-se a despeito dos perigos anunciados pelo medo. A auto-afirmação biológica pede um equilíbrio entre coragem e medo. Se as advertências do medo não produzem efeito, a vida desaparece. A coragem de ser é uma função da vitalidade. Coragem é a possibilidade dependente, não do poder da vontade ou do discernimento, mas de um dom que precede à ação. Não se pode comandar a coragem de ser e não se pode obtê-la obedecendo a um comando.


Paul Tillich (1886-1965 ), teólogo e filósofo alemão que viveu nos Estados Unidos. Orgulhava-se de ter sido o primeiro professor universitário demitido pelos nazistas, quando subiram ao poder em 1933. Influenciado pelo existencialismo, como Kierkegaard, achava que as questões religiosas só devem ser levantadas em função de problemas inerentes à "situação humana". Posições teológicas, segundo Tillich, não deveriam ser respostas a quebra-cabeças teológicos. Deste modo Tillich apresenta o cristianismo como resolução de problemas práticos. Sua discussão sobre a ansiedade em "Coragem de Ser" é um exemplo típico de sua posição. Sua obra máxima foi "Teologia Sistemática". "A Dinâmica da Fé", resume em termos acessíveis suas doutrinas. As considerações abaixo são extraídas de "A Coragem de Ser". (Ed. Paz e Terra), com tradução de E. Malheiros.

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