TERTULIANO E AS TORTURAS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, terça-feira, 7 de março
de 1978
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Dizem:
- "Por que se queixam quando os perseguimos, se vocês
mesmos é que escolheram o caminho da perseguição?
Deviam, assim, estimar os que lhes impõem essa perseguição".
É certo que estamos dispostos sofrer assim como se sofre
a guerra, embora sendo contrários à guerra. Pois
guerrear inclui necessariamente temores e perigos. Mas o lutador,
como vencedor, encontra satisfação na guerra, embora
seja dolorosa, porque ela pode oferecer a glória e os botins.
Nossa guerra consiste em ser levados à barra dos tribunais,
para ali pelejar em favor da verdade, com o risco de nossa própria
cabeça; pois a verdadeira vitória é a conquista
daquilo por cuja causa uma pessoa se dispõe a lutar. Essa
nossa vitória tem a glória de agradar a Deus e alcançar
o troféu da vida eterna.
Somos derrotados frequentemente, não há dúvida,
mas sempre alcançamos o que pretendíamos. Dessa
forma, somos vencedores até quando morremos, e até
quando sucumbimos, estamos escapando.
Que nos chamem agora de lenha na fogueira e de enforcados, pois
nos penduram nos postes e nos queimam vivos. Esta é nossa
maneira de lutar pela vitória, e as chamas em que nos envolvem
são nossas túnicas de glória, como os postes
em que nos penduram são nosso carro triunfal.
É natural, portanto, que não tenhamos ódio
e, por isso, nos chamam de loucos e subversivos furiosos. Mas
essa loucura desesperada e essa subversão constituem, afinal,
nossa maneira de alcançar a glória e firmar nossa
reputação de honra.
Múcio Scevola deixou voluntariamente que sua mão
se queimasse sobre um altar. Todos hoje acham admirável
sua coragem.
Os sicilianos viram Empédocles lançado nas crateras
acesas do Etna, perto de Catânia, e todos hoje proclamamos
vigor de seu espírito.
Certa fundadora de Cartago - Dido - trocou por uma fogueira seu
segundo casamento, e todos hoje louvam a beleza de sua castidade.
Régulo, não querendo ser o único a salvar
a vida diante de uma chusma de inimigos, dispondo-se a defender
os companheiros, acabou sendo crucificado. E o que hoje se conta
não é a perversidade dos que o torturavam, mas a
grandeza de sua bravura e de sua resistência na prisão.
Anaxarco, ao ser socado num pilão de cevada, dizia: "Batam,
batam no envoltório físico de Anaxarco, porque em
suas idéias e em seu espírito são impotentes
para bater". Todos hoje admiramos a magnanimidade desse filósofo,
que fazia humor até quando estava morrendo.
Não é preciso mencionar os que acreditam conquistar
a glória transpassando o corpo com a própria espada
e matando-se de alguma outra forma, para que não perecesse
sua fidelidade. São a estes todos que hoje coroamos com
nossos louvores por sua constância na luta contra as torturas.
Vale a pena lembrar a história de uma rameira de Atenas,
que, depois de haver esgotado pelo cansaço o torturador,
cortou a dentadas a própria língua, cuspindo-a na
cara do beleguim cruel, para cuspir com ela sua voz, e não
ser exposta a denunciar os companheiros de conspiração,
se por acaso, vencida pelas torturas, viesse a fraquejar.
Zenon de Elea, que viveu no ano de 448 antes de Cristo, quando
o tirano Dionísio lhe perguntou que lucros lhe podia dar
sua filosofia, respondeu: "A força de desprezar a
torturta da morte". Submetido aos açoites do tirano
e de seus torturadores, selou sua resposta com o próprio
sangue, até cair assassinado.
Sabemos que entre os lacedemônios os parentes dos torturados
eram muitas vezes chamados a assistir às torturas em seus
entes querido. Longe de levá-los à vacilação
e à covardia, os torturados encontravam na presença
de seus familiares e na exortação que lhes faziam,
mais força e mais valor para enfrentar as torturas e derramar
o próprio sangue nas mãos de seus algozes. A isso
se pode considerar a mais legítima das glórias humanas.
Ninguém pode atribuir a uma demência furiosa ou a
um fanatismo desesperado a resistência diante da morte e
das torturas. Homem deve padecer por sua pátria, por sua
terra, por sua nação e por seus amigos. Deve, portanto,
padecer também por Deus.
A todos os que morreram torturados por sua pátria, por
suas idéias e por seus companheiros, a posteridade levanta
estátuas de bronze, imortaliza em efígies e inscrições
que guardam sua memória imortal. Essas vítimas recebem,
assim, do próprio povo, uma espécie de ressurreição,
pelo menos enquanto durarem os monumentos erguidos em sua honra.
Ninguém, pois, pode considerar insensata uma pessoa que
sofre as torturas e a morte por seu Deus, até porque este,
sim, lhe dá a ressurreição eterna.
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Tertuliano
nasceu em Cartago, entre os anos de 155 e 160 e morreu em 223.
Homem de grande cultura, estudou desde cedo o Grego e o Latim e
aprendeu o Direito, a Retórica e a arte das escrita. Viveu
em Roma e no norte da África. Inimigo do Cristianismo, converteu-se
aos 30 anos, e tornou-se apaixonado defensor da doutrina cristã,
sendo um dos fundadores da filosofia patrística. Algumas
de suas frases se tornaram memoráveis, como aquela que diz
que "os cristãos não nascem, se fazem".
Ou aquela outra, seguindo a qual "Os mártires são
as sementes de novos cristãos". Filiou-se à seita
montanista, que pregava uma vida de extremo rigor e austeridade.
Sua obra é longa, destacando-se o "Apologeticus",
do qual é o texto que hoje divulgamos.
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