TEOFRASTO E OS PRINCÍPIOS

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 02 de maio de 1978.


Como e por meio de que sinais característicos devemos delimitar o estudo dos primeiros princípios?
Como efeito, o estudo da natureza é mais variado em seu objetivo e, como pelo menos alguns asseveram, mais desordenado, por compreender toda espécie de mudanças, ao passo que o estudo dos primeiros princípios é definido e imutável. Por isso também, de um modo geral, o consideram um estudo mais nobre e mais elevado.
Nosso ponto de partida consiste em averiguar se existe conexão e uma espécie de comunidade recíproca entre os objetos inteligíveis e as coisas da natureza, ou, se, pelo contrário, não existe, mas se uns e outros são, por assim dizer, completamente separados, embora de algum modo cooperem para constituir a substância total.
Seja como for, é mais racional supor que existe uma conexão, e que o universo não é mera série de episódios, mas que algumas coisas são, de certo modo, anteriores, e outras, posteriores, visto umas serem princípios reguladores, e as outras subordinadas a eles, da mesma forma que as coisas eternas são anteriores às corruptíveis. Sendo assim, qual é a natureza do objetos inteligíveis, e em que espécie de coisas é que eles se encontram?
Se os objetos inteligíveis se encontram apenas nas coisas matemáticas, como alguns dizem, nem a conexão deles com objetos sensíveis é clara, nem de um modo geral parece serem aptos a se desempenharem completamente de sua tarefa. Pois, por um lado, parece haverem sido inventados por nós, no momento de revestirmos as coisas com figuras, formas e proporções, e não possuírem em si e por si nenhuma natureza. Por outro lado, se isto não é verdade, ao menos sua conexão com as coisas naturais não é tal que produza nelas vida e movimento; pois, nem sequer o número, que alguns classificam como o primeiro e superior fundamento de todas as coisas, é capaz de o fazer.
Se, porém, existe outra substância anterior e superior (aos objetos das matemáticas), devemos tentar especificá-la e dizer se ela é substância una numericamente, ou especificamente, ou genericamente. Em todo caso, é mais razoável supor, visto possuírem natureza de princípio, que deveriam encontrar-se somente em poucas coisas e em coisas não de espécie ordinária, se é que não apenas em coisas primordiais e na primeira de todas.
Qual seja esta substância, ou quais sejam estas substâncias, na hipótese de que haja mais de uma, é o que devemos tentar mostrar de uma ou de outra maneira, quer servindo-nos da analogia ou de qualquer outra comparação. É sem dúvida necessário reconhecê-lo por algum poder e superioridade que elas tenham sobre outras coisas, exatamente como se se tratasse de apreender Deus; pois o princípio regular de todas as coisas, pelo qual estas existem e se conservam, é divino. É talvez fácil descrevê-las deste modo, mas é difícil fazê-lo de maneira mais clara ou convincente. Sendo tal o princípio regulador, veio estar em conexão com as coisas sensíveis e a natureza estar, por assim dizer, em movimento, sendo esta sua peculiar propriedade, é manifesto que devemos estabelecê-lo como uma causa do movimento, é evidente que não é por ele mesmo ser movido que serve de causa às coisas naturais, restando só a alternativa de ser movido por algum outro poder superior e anterior.
Ora, essa é a natureza do objeto do desejo, do qual procede o movimento circular, que é contínuo e não pára. Pelo que, no objeto de desejo, encontraremos a solução da objeção, de que o único princípio possível do movimento só é o que comunica movimento pelo fato de ser movido.
Até aqui nosso raciocínio é, por assim dizer, bem concatenado, porque estabelece um princípio único de todas as coisas, ao mesmo tempo que lhes assinala sua atividade e essência. E, além disso, porque não o descreve como algo de divisível ou de quantitativo, senão que o eleva de maneira absoluta a uma região mais excelente e mais divina; pois é preferível expô-lo deste modo, do que limitar-nos a afastar dele toda tendência à divisão ou participação...
De qualquer maneira, são estas as questões que nos cumpre examinar. Mas, como se disse ao princípio, devemos tentar encontrar um certo limite, a um tempo, na natureza e na substância do universo, bem como na finalidade e na tendência para o melhor. Este é o ponto de partida para o estudo do universo, a saber: — determinar as condições de que dependem os seres e suas relações recíprocas.


Teofrasto, filósofo grego do século III antes de Cristo, nasceu provavelmente em 374 e morreu por volta do ano 287. Segundo Diógenes Laércio, seu nome era Tirtamo, mudado por Aristóteles para Teofrasto, que quer dizer "palavra divina". Frequentou as aulas de Platão e Aristóteles, ligando-se mais a este último. Foi mestre de Menandro e chegou a reunir dois mil discípulos. Sua obra, vastíssima, compreendeu os mais diversos ramos do saber do seu tempo. O texto que hoje publicamos é do volume "Moralistas Griegos", organizado por Jacinto Diaz de Miranda, Madri, 1915.

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