SWIFT E OS COSTUMES

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 13 de outubro de 1978

Têm leis e costumes singularíssimos, que eu talvez tentasse justificar, se não fossem contrários aos da minha querida pátria. A primeira, de que farei menção, diz respeito aos denunciantes. Todos os crimes contra o Estado são punidos nesse país com extremo rigor; se o acusado, porém, prova evidentemente a sua inocência, o acusador é logo condenado a uma ignominiosa morte e todos os seu bens confiscados em prol do inocente. Se o acusado é pobre, o imperador, do seu tesouro particular, indeniza o acusado de todas as perdas e danos.
A fraude é considerada como um crime maior do que o roubo, visto como existe o principio de que o cuidado e a vigilância, com um espírito vulgar, podem garantir os bens de um indivíduo contra as tentativas dos ladrões, mas a probidade não tem defesa contra a astúcia e a má fé.
Embora eu considere os castigos e as grandes recompensas como eixos em que gira o governo, ouso dizer que a máxima de castigar e recompensar não é observada na Europa com a mesma sensatez como no império de Liliput. Todo aquele que pode apresentar provas bastantes de que observou fielmente as leis do seu país durante setenta e três luas, tem o direito de pretender certas regalias, consoante ao seu nascimento e a sua posição, com certa quantia tirada de um fundo destinado a esse fim; alcança até o título de snipall, ou do legítimo, que é apenso ao seu nome; esse título, porém, não passa aos descendentes. Estes povos vêem como um prodigioso defeito político entre nós que todas as nossas leis sejam ameaçadoras e que a infração seja punida com os mais severos castigos. Enquanto a sua observância não dá direito a recompensa alguma; por este motivo representam a justiça com seis olhos, dois adiantes, dois atrás e um de cada lado (para simbolizar a circunspecção), segurando na mão direita um saco cheio de ouro, e empunhando na esquerda uma espada embainhada, para demonstrar que está mais disposta a premiar do que a punir.
Na escolha que fazem dos súditos para desempenharem cargos público, olham mais para a probidade do que para o talento. Como o governo é necessário ao gênero humano, crêem que a Providência nunca teve em mira fazer da administração dos negócios públicos uma ciência complicada e misteriosa, acessível apenas a um limitado número de espíritos raros e sublimes, desses três ou quatros prodígios, que aparecem lá de séculos a séculos; mas julgam que a verdade, a justiça, a temperança e as restantes virtudes estão ao alcance de toda gente e que a prática dessas virtudes, acompanhada de alguma experiência e bons intuitos, tornam quem quer que seja apto para servir ao seu pais, embora muito raquítico e muito tacanho.
Persuadindo-se de que os talentos superiores estão longe de suprir as virtudes morais, dizem eles que os empregos não poderiam ser confiados a mais perigosas mãos do que às dos grandes talentos que não possuem virtude alguma, e que os erros nascidos da ignorância de um ministro probo não têm tantas consequências funestas para o bem do seu povo, como as obscuras práticas desse ministro, cujas tendências fossem depravadas, cujas intenções fossem criminosas ou predispostas a fazer o mal impunemente.
Aquele dos liliputianos que não acreditar na providência divina é declarado incapaz de exercer qualquer cargo público. Como os soberanos se julgam, muito justamente, delegados da providência, os liliputianos supõem que nada há mais absurdo nem mais incoerente do que o procedimento de um príncipe que serve de gente sem religião, que nega essa suprema autoridade de que se considera depositário e da qual, de fato, recebe a que possui.
Referindo-me a estas leis e às seguintes, apenas falo das leis originais e primitivas dos liliputianos. Sei que, pelas modernas leis, estes povos caíram em um grande excesso de corrupção; prova-o o vergonhoso uso de obter os mais elevados empregos dançando na corda e os lugares de distinção os que saltam à vara larga. Note o leitor que esse indigno uso foi introduzido pelo pai do atual imperador.
Entre aquele povo, a ingratidão é tida como um crime enorme, como um outro tempo o foi, segundo refere a história, aos olhos de algumas nações virtuosas. Dizem os liliputianos que todo indivíduo que se torna ingrato para com o seu bem-feitor deve ser necessariamente inimigo de todos os outros homens.


Jonatham Swit (1667/1745), escritor irlandês, é por muitos considerado o maior prosador da língua inglesa. Ordenou-se sacerdote anglicano e nessa condição foi deão da catedral de Saint Patrick, em Dublin. Mas seu espírito mordaz o transformou num dos maiores críticos de seu tempo às diferentes igrejas cristãs, bem como à sociedade inglesa. Sua obra mais conhecida, "As viagens de Guliver", foi publicada quando o autor tinha 59 anos de idade. Embora incluída hoje na literatura infantil, é uma das mais demolidoras sátiras contra a vida pública da Inglaterra e as instituições políticas e sociais européias. O trecho acima relata os costumes dos liliputianos, entre os quais Guliver viveu algum tempo. Foi extraído da Coleção Clássicos Jackson. Tradução de Cruz Teixeira.


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