SPENGLER E O ESTADISTA

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 1978

Como se faz política? O verdadeiro homem de Estado é, antes de tudo, um conhecedor de homens, de situações, de coisas. Tem uma "visão" que sem vacilar, imediatamente, abarca o círculo das possibilidades. O conhecedor de cavalos examina, num golpe de vista, a atitude do animal, e sabe que possibilidades tem na carreira. O jogador lança um olhar sobre o adversário e sabe a jogada imediata. Fazer o conveniente "sem sabê-lo", ter a mão segura, a mão que encurta ou afrouxa insensivelmente as rédeas. Este é justamente o contrário do talento próprio do homem teórico.
O compasso secreto de todo "devenir" é, no político e nas coisas históricas, sempre um só e sempre o mesmo. Se adivinham, se acoplam perfeitamente. Nunca o homem dos fatos corre o perigo de construir. Não acredita nas palavras sonoras. Tem continuamente na boca a pergunta de Pilatos. O verdadeiro homem de Estado está além do verdadeiro e do falso. Não confunde a lógica dos acontecimentos com a lógica dos sistemas. A verdade - ou os erros, o que dá na mesma - não significa para ele senão correntes espirituais que computa por seus efeitos e cuja força, duração e direção estima a introduzir em seus cálculos, para o destino do poder que dirige.
Possui, sem dúvida, convicções que lhe são muito caras; mas as possui como homem privado. Nenhum político de alta categoria se sentiu, ao agir, vinculado por suas convicções. "Aquele que age não tem consciência; só o que contempla tem consciência" (Goethe). Isto se pode dizer de Sila e de Robespierre, como de Bismarck ou de Pit. Os grandes papas e os chefes dos partidos ingleses, quando tinham que dominar as coisas, não seguiram outros princípios senão os que seguiram os conquistadores e caudilhos de todos os tempos. Se dos atos de Inocêncio III, que quase levou a Igreja ao domínio universal, se deduzirem as regras fundamentais, obter-se-à o catecismo do êxito, que representa o oposto de toda moral religiosa; mas sem isto, não haveria Igreja, nem colônias inglesas, nem capitais americanas, nem revolução vitoriosa, nem, finalmente, Estado, partido, povo, ou situação suportável. Quem carece de consciência é a vida, não o indivíduo.
Por isso, é preciso compreender o tempo, para o qual se nasceu. Quem não vislumbre e contemple as potências mais íntimas da época: quem não sinta em si mesmo algo que com elas tenha afinidade, algo que impele por vias indescritíveis em conceitos; quem acredite no superficial, na opinião pública, nas palavras sonoras e nos ideais do dia, não está à altura dos acontecimentos. Os acontecimentos é que o dominam - e não ele aos acontecimentos. Não se há de olhar para trás nem buscar o critério no passado. Muito menos olhar para os lados, atrás de um sistema. Em épocas como atual, ou como a época dos Gracos, há duas classes de idealismo, ambas fatais: o reacionário e o democrático. O primeiro crê na reversibilidade da história; o segundo num fim da história. Mas para o inevitável fracasso que ambos lançam sobre a nação, sobre cujo destino têm poder, é indiferente que o país tenha sido sacrificado a uma lembrança ou a um conceito. O verdadeiro homem de Estado é a história em pessoa, é sua direção como vontade individual, é sua lógica orgânica como caráter.
O político de alto bordo deve, porém, ser educador num sentido superior, não representar uma moral ou uma doutrina, mas oferecer um exemplo em sua ação. É bem conhecido o fato de que nenhuma nova religião mudou jamais o estilo da existência. Penetrou a consciência, impregnou o homem espiritual, lançou nova luz sobre um mundo além deste mundo, criou imensurável beatitude pela força da limitação, da renúncia, da paciência, até a morte. Mas nunca teve o menor poder sobre as forças da vida. Só a grande personalidade, só o elemento racial nela, só a força cósmica vinculada na pessoa podem realizar criações no que é vivo, não pedagogicamente, mas criativamente, transformando o tipo de povos e de classes inteiras.
A verdade, o bem, o sublime não são fatos. Fatos são o romano, o puritano, o prussiano. O sentido de honra, o sentimento do dever, a disciplina, a decisão - nada disso se aprende nos livros, mas se desperta no curso vital, por meio de um modelo vivo. É por isto que Guilherme I foi um dos primeiros educadores de todos os tempos, cuja atitude pessoal, educativa, da raça, não desapareceu na série das gerações.
O que distingue o verdadeiro homem de Estado do mero político, do jogador que joga pelo gosto de jogar, do caçador afortunado nas profundezas da história, do interessado avarento, do vaidoso, do vulgar, é que é licito exigir sacrifícios e os recebe, porque seu sentimento de ser necessário à época e à nação é partilhado por milhares de pessoas, transformando-as interiormente e capacitando-as para façanhas a cuja altura de outro modo não chegariam.
Mas o que é mais importante não é obrar, mas poder mandar. Com o mando, o indivíduo cresce sobre si mesmo e se converte em centro de um mundo ativo. Há uma maneira de mandar que faz da obediência um hábito livre, orgulhoso e nobre. Napoleão não possuía esta maneira. Um resto de sentimento subalterno o impediu de educar homens e não instrumentos registradores. Não dominou por meio de personalidades, mas por meio de ordens.


Oswald Spengler (1880-1936), filósofo alemão, era filho de um mineiro. Doutorou-se em Halle, com uma tese sobre Heráclito. Ensinou em Hamburgo e em Munique, onde publicou, em 1918, um livro que abalaria o pensamento ocidental - "Untergang des Abendlands" - "A Decadência do Ocidente", que traz como subtitulo "Umrisse einer Morphologie der Weltgeschichte" - "Bosquejo de uma morfologia da história universal". Publicado depois da Primeira Guerra Mundial, o livro espantoso, no qual todos os conhecimentos humanos, da matemática à biologia, são postos a serviço da história, ilumina o mundo contemporâneo com a luz de todas as referências da humanidade. A única língua ocidental em que não está editada a obra fundamental de Spengler é o Português, hélas! (Ou estará?) Morreu no ostracismo dentro da própria pátria, rejeitado pelo nazismo. O texto que hoje publicamos é do 3° volume da "Decadência do Ocidente".


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