SPENGLER E A POLÍTICA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 4 de janeiro de 1978
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Tentamos
apresentar aqui uma "fisionomonia da política",
tal como foi feita realmente no decorrer de toda a História.
Não pretendemos esboçar um sistema ideológico.
Chamamos de História as correntes da existência humana
quando as percebemos como movimento. Denominamo-las de estirpe,
classe, povo, nação, quando as consideramos como
algo movido. Política é o modo como essa existência
fluente se sustenta, cresce, triunfa sobre outras correntes de
vida. "Toda a vida é política, da menor manifestação
instintiva até a medula." Humboldt disse no campo
de batalha de Waterloo: "perecem os impérios, mas
um bom verso perdura." Contudo a personalidade de Napoleão
plasma a história dos séculos seguintes. Os bons
versos - por que não interrogou Humboldt a seu respeito
qualquer camponês que lhe cruzasse o caminho? - perduram,
sim, porém, para a aula de literatura. Napoleão,
por sua vez, reina no íntimo de nós todos, domina
os nossos Estados e exércitos, nossa opinião pública,
toda a nossa realidade política. Um povo existe realmente
só com relação a outros povos, e a guerra
é a política primordial de tudo quanto vive. A política
superior é a substituição da espada por armas
mais espirituais.
Não há História que não seja pessoal,
e portanto só existe política pessoal. Não
há tampouco povos dotados de talento político. O
que distingue os ingleses como nação é uma
tradição de confiança. O talento político
das multidões restringe-se à confiança no
seu líder. O estadista nato é antes de mais nada
conhecedor de homens, situações e coisas. Como homem
realista, não corre nunca o perigo de fazer política
sentimental ou programática. Possui, sem dúvida,
convicções que lhes são caras, porém
as possui como particular. A vida, ao contrário do indivíduo,
carece de consciência.
O autêntico estadista é a História em pessoa,
sua direção como vontade individual, sua lógica
orgânica como caráter. Mas também deveria
ser educador, num sentido elevado. É bem conhecido o fato
de que nenhuma nova religião jamais modificou o estilo
da existência. As religiões impregnaram, isso sim,
o homem espiritual e criaram inestimável felicidade pela
força de abnegação, da renúncia, da
paciência, até a morte. Somente a grande personalidade,
somente o elemento racial inerente a ela, podem realizar criações
na esfera da vida e alterar o tipo de classe e povos inteiros.
Não a verdade, o bem, o sublime, mas o romano, o puritano,
o prussiano, são fatos. O senso de honra, a consciência
do dever, a disciplina, a resolução, não
se aprendem de livros. São despertados por modelos vivos.
Por essa razão foi Frederico Guilherme I um dos maiores
educadores de todos os tempos, cuja influência pessoal formou
a raça e não desapareceu na sequência das
gerações. Isso se aplica também às
igrejas, que são coisas muito diferentes das religiões;
a saber, elementos do mundo real e, portanto, têm, quanto
à sua direção, caráter político.
Cumpre acrescentar que o mundo foi conquistado não pela
prédica cristã, mas pelo mártir cristão.
Mais importante e mais difícil do que as tarefas imediatas
da ação e do mando é a missão de estabelecer
uma tradição. O grande estadista é uma figura
rara. Se ele aparece ou não, se consegue ou não
impor-se, se isso ocorre cedo ou tarde, depende do acaso. Criar
uma tradição significa eliminar o acaso. A grande
fraqueza de Bismarck reside na omissão de formar, ao lado
do corpo de oficiais de Moltke, uma raça de políticos
de igual valor, e que se identificasse com o Estado e as novas
incumbências do mesmo. Um povo "soberano" nasce
somente de uma minoria perfeitamente criada, completa em si mesma;
minoria que atrai à sua esfera todos os talentos, a fim
de empregá-los, e que, precisamente por isso, harmonize
com o resto da nação governada por ela. O alcance
dos êxitos obtidos por épocas posteriores corresponderá
exatamente à força da tradição que
pulsar no sangue do povo.
A política é a arte do possível. Todo indivíduo
ativo nasceu em determinado tempo e para esse tempo. Com isso,
fica definido o círculo do que lhe é possível
obter. A arte política reside na visão clara das
grandes linhas, imutavelmente traçadas, e mão firme,
capaz de manejar o que for singular e pessoal. O fato de ter explodido
uma revolução demonstra sempre falta de tato político,
da parte dos governantes, tanto como de seus adversários.
As formas políticas são formas vivas, a modificarem-se
em certa direção. Quem quiser estorvar tal desenvolvimento,
cessará de estar "em forma". O necessário
deve ser feito no momento oportuno quando ainda for um regalo.
A influência sobre os métodos políticos é
muito escassa. Mas, para alguém estar em "forma política",
é preciso que disponha irrestritamente dos recursos mais
modernos. Os meios do presente serão longos anos ainda
os parlamentares: eleições e imprensa. O estadista
pode respeitá-lo ou desprezá-los, mas tem de dominá-los.
A política é, por último, a arte de manter
a própria nação "em forma", para
que ela possa enfrentar os acontecimentos exteriores. A política
interna existe, exclusivamente, em função da política
externa, e não vice-versa. O mestre político evidencia-se
mais claramente na habilidade de harmonizar a forma pública
do conjunto - "os direitos e as liberdades" - com o
gosto da época, sem diminuir a capacidade da massa, consegue-o
pela educação de sentimentos, tais como confiança,
respeito à chefia, consciência da força, contentamento
e, se necessário for, entusiasmo. Mas tudo isso recebe
o seu valor somente em consideração do fato fundamental
de que nenhum povo está sozinho no mundo, e de que o seu
futuro será decidido pelo confronto de seu poderio com
o de outros povos e potências, e nunca pela mera ordem interna.
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Oswald
Spengler (1880-1936), pensador alemão conhecido por sua
contribuição à filosofia da História.
Sua obra máxima e única, "A Decadência
do Ocidente", foi publicada em 1918, justamente quando era
consagrada a debacle germânica da Primeira Guerra. As conclusões
pessimistas do autor sobre a civilização moderna e
a urbanização caíram como uma luva no estado
de espírito que prevalecia na época. Ardente nacionalista,
Spengler foi muitas vezes acusado de ter favorecido intelectualmente
a ascensão do fascismo alemão. Spengler na realidade
opôs-se a Hitler, porque para ele a Alemanha necessitava de
um herói e não de um personagem de opereta. Spengler
morreu amargurado com a sua má fama de aparente ideólogo
do nazismo, e só depois da Segunda Guerra Mundial, graças
aos trabalhos de Arnold Toynbee, as suas teses ganharam nova ressonância.
De acordo com ele, a História, objetivamente analisada, estaria
desprovida de um eixo ou ponto de referência. A História
seria uma coletânea de histórias de um infinito número
de configurações culturais. Em face disto, Spengler
procurou fazer a morfologia comparada das culturas - uma investigação
no seu formato, ritmo e leis. O trecho que abaixo se publica são
as conclusões da "Decadência do Ocidente",
versão brasileira (tradução de H. Caro, Edição
de Zahar, Rio).
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