SPINOZA E A SEGURANÇA

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 26 de janeiro de 1978.


Nada está mais de acordo com a natureza do que a união dos indivíduos da mesma espécie. Por conseguinte, não há nada mais útil a própria conservação e para desfrutar de uma vida racional, do que um homem que é conduzido pela razão. Alem disso, como não se conhece, entre as coisas singulares, nada mais excelente do que o homem dirigido pela razão, ninguém pode mostrar melhor o que vale, portanto, por sua habilidade e seu engenho, que educando os homens de tal maneira, que vivam, finalmente, sob o próprio império da razão.
Na medida em que os homens são lançados uns contra os outros pela inveja ou algum outro sentimento de ódio, colocam-se uns contra os outros e, por conseguinte, são tanto mais de temer, quanto mais poderosos em relação a todos os outros indivíduos da natureza.
O ânimo não é vencido pelas armas, mas pelo amor e a generosidade. É útil aos homens ter relações sociais e ligar-se com vínculos tais que formem um todo perfeitamente unido. E é absolutamente útil fazer aquelas coisas que servem para assegurar as amizades.
Mas para isso se requerem arte e vigilância. Com efeito, os homens são diversos (pois são raros os que vivem sob os preceitos da razão), e, apesar de tudo, a maior parte deles se torna invejosa e mais inclinada à vingança que à misericórdia. Assim, pois, para suportar a cada um segundo seu caráter e abster-se de imitar suas paixões, é preciso um singular poder do espírito. Os que se dedicam a censurar os homens e reprovar seus vícios mais do que a ensinar-lhes virtudes e abater os ânimos em vez de fortalecê-los, são insuportáveis a si mesmos e aos demais. Como consequência, muitos, por uma excessiva impaciência do espirito e por um falso zelo religioso, preferiram viver entre brutos antes que entre homens.
Assim também as crianças e os adolescentes, que não podendo suportar com equanimidade as repressões dos pais, preferem sentar praça e enfrentar as agruras da guerra e a prepotência de um tirano, a submeter-se às comodidades domésticas e às admoestações paternas, aceitando qualquer carga que lhes imponham, contanto que se vinguem de seus pais.
Embora na maior parte das vezes os homens se governem em tudo pelo apetite sensual, é certo que a vida em sociedade traz mais vantagens que inconvenientes. Por isso, vale mais a pena suportar as ofensas com equanimidade e apoiar tudo quanto contribua para estabelecer a concórdia e a amizade.
Tudo que se refere à justiça, à equidade e à honestidade produz concórdia. Os homens, com efeito, dificilmente suportam, a mais da injustiça e da iniquidade, o que é considerado desonesto ou desrespeitoso aos costumes estabelecidos na sociedade. Para conciliar o amor entre os homens, é necessário, antes de tudo, atender às exigências da religião e da moralidade.
A concórdia muitas vezes é obtida pela imposição do temor, mas então não há boa fé. Observe-se que o temor nasce da impotência do espírito e não se inclui, portanto, entre as vigências da razão. Também a comiseração não resulta da razão, apesar de suas aparências de moralidade.
Outra coisa que produz a concórdia, a paz na sociedade, é a bajulação, que é um vergonhoso delito de servidão e perfídia. Ninguém é melhor presa da bajulação do que o soberbo, que quer ser o primeiro e não é.
Também a vergonha pode contribuir para a concórdia. Mas a vergonha, envolvendo o ocultamento das ações, é uma espécie de tristeza humana, que nada tem a ver com a razão.
Depois dessas observações, passo àquela parte da ética que trata da maneira de chegar à liberdade ou do caminho pelo qual se chega a ela. Tratarei, por isso, do poder da razão, mostrando o que pode a razão contra as paixões, e depois, o que é a liberdade da mente humana, a felicidade. E é por causa dessa liberdade da mente que o sábio é mais poderoso do que o ignorante.
Ao mostrar o poder da mente sobre as paixões, verifica-se que a grandeza maior da mente é a liberdade. E se a liberdade da mente é maior do que as paixões —o medo, a tristeza, a bajulação, a vergonha, o desprezo, a submissão— há de concluir-se que só a liberdade produz a verdadeira paz e conciliação na sociedade dos homens. Qualquer outra paz e segurança, que não sejam geradas pela liberdade, são uma falsa paz e uma falsa segurança.


Baruch-Spinoza (1632-1667) era judeu, pertencente a uma família oriunda da Espanha, que passou de Portugal aos Países Baixos. Expulso de sua sinagoga, suas relações foram entre cristãos, especialmente em Amsterdã, onde nasceu, e em Haia. Spinoza, às vezes chamado Espinoza, cultivou sempre o amor à liberdade e à própria independência, recusando, por isso, uma cátedra que lhe ofereceram na prestigiosa Universidade de Heidelberg. Sua participação na política holandesa foi marcada por gestos de bravura moral e de grande honra pessoal. Afetado de tuberculose, morreu jovem, antes de publicar sua obra capital —"A Ética", editada depois de sua morte. Escreveu quase sempre em latim, língua para a qual traduziu seu próprio nome, passando a chamar-se Benedictus. Mas também escreveu parte de seus trabalhos em holandês. É de trechos de sua "Ética" o texto que hoje publicamos.

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