SPINOZA E O ESTADO

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 28 de outubro de 1977.


O homem pertence mais a si mesmo na medida em que é governado pela razão. Em consequência, o Estado mais poderoso e mais senhor de si é aquele fundado e dirigido pela razão. O melhor sistema de conduta a ser conservado é aquele regulado pelos mandamentos da razão.
Conclui-se que um homem ou um Estado, enquanto pertence a si mesmo, é perfeitamente bom. Porque não é a mesma coisa agir segundo seu direito e agir perfeitamente bem.
Cultivar seu campo segundo seu direito é uma coisa, cultivá-lo perfeitamente bem é outra coisa.
Assim há uma substancial diferença entre defender-se, conservar-se, exarar julgamento conforme seu direito e fazer isso perfeitamente bem. Logo, o direito de ocupar o poder e de cuidar dos negócios do Estado não deve ser confundido com o melhor uso possível do poder e o melhor governo. Eis porque, tendo tratado do direito do Estado em geral, cuidaremos agora da melhor condição possível de cada Estado em particular.
A condição de um Estado determina-se facilmente pela relação com o seu fim geral — a paz e a segurança da vida. Por conseguinte o melhor Estado é aquele em que os homens passam sua vida na concórdia e onde seus direitos não recebem nenhuma restrição.
Também é certo que as sedições, guerras, o menosprezo ou a violação das leis devem ser imputados menos à maldade dos súditos do que à má organização do poder.
Os homens não nascem próprios ou impróprios à condição social, senão que tais se tornam. Notai, aliás, que as paixões naturais dos homens são as mesmas em toda parte. Se, pois, o mal tem mais império em tal Estado e se lá cometem-se mais ações culpáveis do que em outro qualquer, isso deve-se, certamente, ao fato de que esse Estado não tenha provido bastante esta concórdia, que não tenha instituído leis sábias e, por conseguinte, não haja entrado em plena posse do direito absoluto do Estado. Deste modo, assim como se devem imputar à organização do Estado vícios de seus súditos — seu gosto pela licenciosidade e pela revolta — assim, também, é à do Estado — ao seu direito plenamente exercido — que se devem atribuir as virtudes dos súditos e seu apego às leis.
Num Estado onde os súditos não se levantam em armas pelo único motivo de que estão paralisados pelo terror, não se pode dizer que reine a paz. Porque a paz não é a ausência da guerra. A paz é a virtude que nasce do vigor da alma. A verdadeira obediência é a vontade constante de executar tudo o que deve ser feito segundo a lei comum do Estado.
Uma sociedade em que a paz não tenha outra base que não a inércia dos cidadãos, que se deixam conduzir como um rebanho e não se exercitam senão na escravidão, não é uma sociedade, é um ermo, uma solidão.
Quando se disse que o melhor governo é aquele em que os homens passam a vida em concórdia, entenda-se o conceito de vida como vida humana (que não se define pela circulação do sangue e outras funções comuns a outros animais) mas, antes de tudo, pela verdadeira vitalidade da alma, pela razão e pela virtude.
Falando em governos instituídos para a concórdia, entendo aquele estabelecido por uma multidão livre e não aquele imposto à multidão pelo direito da força ou da guerra. Uma multidão livre é conduzida mais pela esperança do que pelo temor. Uma multidão subjugada, ao contrário, é conduzida mais pelo temor do que pela esperança. Aquela esforça-se para cultivar a vida. Esta só procura evitar a morte, a primeira quer viver por si mesma, a segunda é constrangida a viver para o vencedor.
A diferença entre um governo instituído por uma multidão livre e outro conquistado pela força reside nos fins e nos meios de conservação, totalmente distintos. Quais são para um príncipe, animado apenas da paixão de dominar, os meios de consolidar e dominar seu governo? Foi o que mostrou longamente o penetrante Maquiavel. Com que objetivo escreveu ele seu livro? Se teve um objetivo honesto, como se deve esperar de um sábio, pretendeu mostrar a imprudência dos que se esforçam em suprimir as causas que fizeram o tirano. Essas causas mesmas tornam-se tanto mais potentes quanto se dá ao tirano maiores razões de ter medo. Maquiavel quis talvez mostrar o quanto é perigoso a multidão livre confiar exclusivamente a um único homem sua salvação. Além de estar sujeito às vaidades e de acreditar ser capaz de contentar a todos, vive este salvador sob o intenso temor de cair em ciladas cuidando da sua segurança. Quem se ocupa em demasia em estender armadilhas não cuida dos interesses da multidão.


Baruch Spinoza (1632-1677), metafísico racionalista holandês, recebeu a educação rabínica tradicional mas seu espírito independente levou-o a ser excomungado pela sinagoga. Não obstante isto, manteve-se totalmente afastado da vida holandesa, chegando a recusar uma cadeira da Universidade porque isto tiraria sua liberdade e individualidade. Seu primeiro grande trabalho filosófico foi um estudo sobre Descartes. Apesar de afastado do judaísmo tradicional, seu pensamento segue a racionalidade do Talmud. Preocupou-se com a unicidade de Deus, com a teoria do conhecimento (aproximando-se bastante de conceitos que Freud, 300 anos mais tarde, desenvolveu). Escreveu "Tratado Teológico-político", "Ética", "Reforma do Entendimento". O texto acima faz parte de um "Tratado Político" inacabado e adaptado para facilidade de compreensão na tradução de José Perez (Ed.Ouro).

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