SPENCER ESCOLHE OS GOVERNANTES

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 06 de dezembro de 1977

No Estado rude, onde o direito confunde-se com o poder, onde a guerra comanda a vida, onde as qualidades requeridas pelos governantes são força física, determinação, astúcia - é fácil escolhê-los. Ou melhor, escolhem-se a si mesmos. As qualidades que fazem de alguém o governante apropriado são as mesmas que este utiliza para ganhar a supremacia sobre os demais.
Mas num Estado mais moderno, complexo e basicamente pacífico, aquelas qualificações mencionadas não são as importantes. E mesmo que o fossem, os arranjos sociais firmes e estáveis desta sociedade evoluída impediriam que o detentor dessas características os quebrassem. Numa sociedade civilizada, as características requeridas para governantes não são o desejo do poder mas uma genuína vocação para fazer os cidadãos felizes. Não é o ódio aos inimigos que faz dos governantes grandes governantes, mas uma equidade desapaixonada. Não são as manobras velhacas que fazem os governantes, mas a capacidade de perceber as necessidades dos governados antes mesmo de eles as sentirem.
Na medida em que uma sociedade se torna populosa, complexa e pacífica, as escolhas tornam-se difíceis. A paz é o maior entrave às escolhas dos governantes. Sem a paz, teríamos as leis de guerra e, neste caso, o poder seria facilmente alcançado por qualquer tirano arrojado. Os regimes pacificados, portanto, são os únicos que têm dificuldades para escolher seus governantes, mas ao mesmo tempo os únicos que podem escapar dos déspotas.
Nenhum ser humano isoladamente - por mais sábio, honesto e justo que seja - está apto a converter-se no governante absoluto da sociedade. Com as melhores intenções, os déspotas benevolentes acabam tornando-se tirânicos líderes.
Podemos acusar facilmente os governos representativos e sua forma de escolher lideranças. Muitas vezes, por fatalidade, seus crivos deixam escapar figuras humanas magníficas. Mas nos regimes autoritários, esta exceção torna-se regra, já que as qualidades exigidas para sua chefia anulam todos os homens capazes e talentosos para dirigir a Nação. Os governos representativos são falhos, mesmo assim são os melhores para escolher o que de melhor produz uma sociedade.
O arbítrio, longe de organizar, desmantela. Aqueles governantes que, inspirados em seu bom senso, proíbem a circulação de idéias contrárias aos seus interesses, verificarão que inexplicavelmente estas idéias se multiplicarão. Aqueles outros, igualmente inspirados em outro tipo de bom-senso, que proíbem taxas de juros muito altas ficarão certamente espantados quando a medida tornar o crédito ainda mais difícil. Ninguém imaginaria que quando os cavalos foram substituídos pelos trens a vapor, repentinamente, faria necessário a utilização de mais cavalos do que antes para levar as novas multidões de passageiros ferroviários das suas casas às estações de trem. Um balão sobe impulsionado pelas mesmas forças que fazem maças despencar. O potássio inflama quando jogado na água; um pedaço de gelo derrete mais lentamente quando envolvido num cobertor, estas são verdades que requerem um outro tipo de conhecimento. É, aparentemente, mais fácil selecionar governantes nos sistemas autoritários, onde tudo flui magicamente - interesses menores com poderes maiores. Mas vejam que governantes estes sistemas produzem.
A diferenciação primária nas estruturas orgânicas - que se manifesta tanto na história de cada organismo como na história do mundo orgânico - é a que concede papéis distintos às suas partes internas e às externas. As partes que sofrem o atrito e fricção das forças ambientais têm determinada constituição e característica. As parte que não sofrem a ação ambiental têm outra constituição, função, características. Segundo o prof. Huxley, estas diferentes camadas servem para proteção (as externas) e para nutrição (as internas). Nos organismos sociais, pode-se traçar analogia funcional: a camada externa protege o organismo dos agentes ambientais e a interna reúne as funções produtivas da sociedade. Ambas funcionam num sistema cooperado e, ao mesmo tempo, antagônico. Com a ajuda do sistema defensivo, o organismo pode produzir ou processar os alimentos sem interferência dos inimigos. Mas é o sistema produtivo que fornecerá os elementos para integrar e fortalecer suas defesas. Nos organismos vivos, o controle central está na parte interna convenientemente protegida e concentrada. Mas para ajustar-se aos inesperados câmbios de ambiente, a camada externa (defensiva) deve ser muito ágil e, portanto, submetida a um núcleo de controle central. Se o comando das defesas fosse externo, seria difuso. Já a estruturação dos sistemas de nutrição pode e deve ter mais flexibilidade justamente para processar diferentes alimentos.
A função do cérebro humano é a de "medianizar" ou homogeneizar necessidades vitais. É no cérebro que se compatibilizam as funções do homem com seus interesses. A mesma coisa ocorre nos parlamentos. É lá que se equalizam reivindicações, vontades e aspirações dos vários corpos sociais com as possibilidades físicas do Estado. Se existisse, um homem sem cérebro seria desiquilibrado. Um Estado sem Parlamento independente é um organismo desequilibrado.
É mais fácil governar sem parlamento, é mais fácil escolher governantes sem auscultar a Nação. É nesta facilidade que se localizam as dificuldades dos Estados sem liberdades.


Herbert Spencer (1820-1903), é considerado o mais importante filósofo e sociólogo inglês do século dezenove. Depois de Darwin, é tido como o mais importante evolucionista da Inglaterra vitoriana. Spencer foi um apaixonado pela liberdade humana. Educado como engenheiro civil, logo encaminhou-se para a Filosofia e a Sociologia, relacionando-as com a Biologia e compondo conceituações universais e poderosas. Nos século vinte, as idéias de Spencer foram esquecidas mas no renascimento ocorrido nos anos 60 ele voltou a ser falado e examinado. Sua obra mais conhecida é "Princípios de Sociologia". Spencer foi o primeiro a utilizar em Sociologia a expressão "estrutura" e muitos estudiosos acreditam que a escola sociológica francesa de Durkheim é consequência dos trabalhos de Spencer. O texto abaixo foi extraído de "O homem contra o Estado", publicado em 1884. Foi utilizado a edição Pelican (1969).


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