SÓLONE AS LEIS ILÍCITAS

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 5 de abril de 1978

Na verdade, as leis que inventei e promulguei, por mais sábias que sejam e por mais que todos assim as considerem, não são suficientes para o bem do povo de Atenas. Os que delas desertam, também não chegam a ser úteis à cidade. Pois o simples fato de cumprir ou descumprir uma lei não é o bastante para convalidar ou invalidar sua eficiência.
As boas leis de uma cidade não são aquelas feitas pelos deuses ou pelos outorgadores que a si mesmos se atribuem a função de legislar. As leis perfeitas são aquelas oriundas da vontade da multidão, qualquer que seja o rumo para onde se incline essa multidão.
Só quando vigoram as leis criadas pelo próprio povo é que as leis dos deuses podem ajudar a cidade. Mas as próprias leis feitas pelo povo só produzem seus bons efeitos quando aqueles que se incumbem de executá-las são pessoas legitimadas para isso pela multidão. Pois, do contrário, as próprias leis que são boas podem ser desvirtuadas em sua aplicação, produzindo efeitos perniciosos, em vez de resultados favoráveis e benefícios para a cidade.
Desse modo, uma lei boa, mas mal administrada, não vale nada. E uma lei é sempre mal administrada, quando seu executor não encontra a fonte de sua autoridade na mesma fonte de onde proveio ao lei, isto é, a multidão que habita a cidade.
As minhas leis e os meus decretos não são suficientes para assegurar o bem da cidade. E a prova de que não o são, é que quando a cidade foi ocupada pela força e o poder passou a ser manobrado por Pisístrato, o tirano que se transformou em rei despótico, fizeram tábua rasa de minhas leis e revogaram meus decretos.
Parece, assim, claro que a própria lei só é realmente boa, quando o ocupante do poder, incumbido de aplicá-la, lhe é fiel. E ele só lhe é fiel, quando seu poder está instituído pelo mesmo poder que instituiu a lei, isto é, a multidão. Não sendo assim, o tirano revoga ou corrompe a lei, e até em nome dela faz coisas contra o povo.
Há várias maneiras de corromper a lei: afrouxando-a, para tornar o povo relaxado em seus costumes e a lei amolecida em sua eficácia, ou endurecendo-a, para escravizar a multidão com decretos que a submetam à ambição do déspota.
Os déspotas costumam instalar-se sob o pretexto de salvar a multidão de algum perigo. A multidão sente-se, assim, agradecida e bajulada por alguém que se dispõe a prestar-lhe um serviço e até a correr riscos por ela, e se esquece dos que verdadeiramente nunca desejaram falar ou fazer qualquer coisa senão em nome do Povo. Se esquece deles, alija-os do poder, e se entrega à servidão e ao engano. E sair da servidão não é fácil tarefa.
Eu mesmo compareci armado diante do Senado, para dizer à multidão que eu era mais sábio do que os que não se davam conta de que Pisístrato queria era tiranizar-nos. Sustentei que minha coragem era maior que a dos que por medo não o repeliam.
Eles, porém, imaginaram que Sólon estava louco. Não me restou, então, senão dar meu testemunho em praça pública sobre o que estava acontecendo e o que ia acontecer daí por diante. Foi o que fiz, exclamando diante de todos: - "Ó pátria, Sólon está aqui disposto a dar-te socorro e ajudar-te com sua palavra e com seus serviços, embora ninguém acredite no que estou dizendo. E até, ao contrário, proclamam que estou louco. Fico sendo, dessa forma, o único inimigo de Periandro. Já não tenho outra coisa a fazer, senão buscar o caminho do exílio. Quem quiser que fique aí, servindo de alabardeiro do tirano".
E tu, Epimênides, que és meu amigo, sabes das espertezas e da hipocrisia com que o tirano ocupou o poder. Começou fazendo toda série de promessas e bajulações ao povo. Quando se esgotou a capacidade de prometer e de bajular, recorreu a outros expedientes.
O primeiro expediente de que lançou mão foi proclamar ao povo que estava sendo atacado, agredido e ameaçado, e precisava de armas e providências para sua salvaguarda.
Conseguiu, assim, que lhe dessem leis terríveis para sua própria segurança e suplicou que lhe concedessem quatrocentos alabardeiros para sua guarda. E o povo, tornado surdo aos bons conselhos de seus verdadeiros representantes e defensores, deu-lhe os quatrocentos alabardeiros, armados com clavas.
Foi quanto bastou para que o déspota subjugasse finalmente a República. E desde então, é em vão que venho clamando e lutando para libertar os cidadãos da servidão a que estão condenados. Já não encontro os homens livres e não sei se eles me ouvem. Pois, depois de tudo isso, acabaram todos tornando-se escravos de Pisístrato.


Sólon (639-559 A.C.) chamado um dos sete sábios da Grécia. Filósofo, poeta, moralista e legislador, era primo e afetuoso amigo de Pisístrato, com quem rompeu, por divergências políticas, embora mantivesse por toda a vida, segundo Plutarco, os mesmos sentimentos de amizade pessoal para com o tirano. O próprio Pisístrato insistiu em contar com sua colaboração, mas o filósofo acabou convencido das más intenções políticas do usurpador, que se sustentava pela força da arma. Pouco resta da obra de Sólon: poemas reproduzidos por Plutarco, fragmentos avulsos e pequenos trechos guardados por Diógenes Laércio. É do discurso de Sólon a Epimênides; em tradução livre, o texto que hoje apresentamos.


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