SÓCRATES E A CALÚNIA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 17 de fevereiro de 1978.
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Em
primeiro lugar, é justo que eu me defenda, homens de Atenas, contra
as calúnias e os caluniadores antigos; depois, contra os recentes.
Pois existem, no meio de vós, várias pessoas que me acusam, e
isto há muitos anos, mas nenhuma delas é fiel à verdade. A esses
que não falam a verdade, eu os temo mais do que a Anito e seus
asseclas que, de resto, não deixam de ser temíveis também. Mas
os mais perigosos de todos, ó atenienses, são aqueles indivíduos
que vos rondam desde os dias da infância, para vos convencerem
das falsidades que levantam contra mim.
Dizem eles que um certo Sócrates, um homem de muita sabedoria,
andando preocupado com os fenômenos celestiais e investigando
tudo que há debaixo da terra, desviava o povo para as coisas enganosas.
Os que espalham isso a meu respeito, atenienses, tentando criar
má fama para o meu nome, são os meus acusadores mais temíveis,
porque quem os ouve é sempre levado a supor que as pessoas dedicadas
ao tipo de estudos e investigações em que me ocupo são pessoas
que não crêem na existência dos deuses.
Acontece ainda que esses acusadores são numerosos, e há muito
tempo que me acusam, escolhendo para ouvinte de suas acusações
exatamente as crianças e os adolescentes, cuja boa fé está sempre
pronta à credibilidade, especialmente quando o acusado é um ausente
que não tem ninguém para defendê-lo. E o mais estranho de tudo
é que não há ninguém que possa identificar esses caluniadores,
cujos nomes ninguém conhece, a não ser o de um comediante. Apesar
de tudo, a calúnia ia se tornando mais perigosa, pois uma pessoa
que dela se convencia, tratava logo de passá-la adiante.
Estou, assim, aqui e agora, diante de uma situação em que preciso
defender-me, mas não aparece nenhum dos que me acusam.
Não tenho uma pessoa contra quem possa argumentar, e só me resta
lutar com quem se defende contra sombras, obrigado a refutá-las
sem conseguir nenhuma resposta...
Comecemos pelo princípio.
Que espécie de acusação é essa, na qual se originou a calúnia
de Meleto sobre a qual se funda o processo forjado contra mim?
Que dizem os caluniadores?
Vale a pena ler o texto da acusação, como se faz em todo processo.
"Sócrates se diz nela é culpado por se exceder na
investigação de fenômenos subterrâneos e celestes, transformando
o mal num bem, e ensinando aos outros que o mal é um bem."
A coisa é mais ou menos assim. É assim que está na comédia de
Aristófanes, onde se fala de um certo Sócrates, carregado por
seus amigos, e que afirmava andar pelos ares e muitas outras coisas
absurdas, das quais eu não consigo entender nada. E se estou me
referindo a isto, não é para fazer pouco caso dos que entendem
dessas coisa, se é que alguém entende.
Deixo isto bem claro, senão corro o risco de ser acusado por Meleto
também de estar fazendo pouco caso dos outros. A verdade, porém,
atenienses, é que eu não sei nada mesmo sobre essas acusações.
Invoco o testemunho da maioria do povo. Peço que as pessoas digam
umas às outras tudo o que me ouviram dizer, e informem sobre os
discursos que eu tenha pronunciado e as conversas que mantive.
Muitos estão em condições de fazer isto. Que digam se alguma vez
me ouviram falar, muito ou pouco, sobre esses assuntos. E isto
bastará para que todos se convençam de que tudo o que se diz ao
meu respeito não tem fundamento.
Na verdade, nenhuma das acusações que me fazem tem procedência,
nem mesmo a de que pretendo ensinar alguma coisa aos outros homens
em troca de dinheiro. Nada disso é verdade. Não que eu não ache
belo uma pessoa ter capacidade de educar os homens, como fazem
Gorgias de Lenkios, Prodikos, de Keos, e Hípias de Eléia. São
homens superiores, cada um deles, e sabem ir por todas as cidades,
convencendo os jovens. E é belo ver esses jovens, que podem conviver
de graça com os cidadãos que bem entenderem, abandonarem todas
as outras companhias, para andar com o mestre a quem têm de pagar,
ficando-lhe, ainda por cima, agradecidos...
Talvez, porém, um de vós me diga: "Mas, Sócrates, afinal
de contas, qual é a tua profissão? Por que essas calúnias? Pois
é óbvio que se não fizesse nada diferente do que faz todo mundo,
não criariam essa fama em torno de teu nome nem se falaria mal
de ti. Explica-te, pois, do contrário, temos de chegar às nossas
próprias conclusões".
Têm razão em falar assim. Tentarei demonstrar o que está na origem
dessa notória calúnia. Escutai-me. Poderá parecer a algum de vós
que estou brincando, mas na verdade eu vos direi toda a verdade.
A única razão pela qual cercaram de calúnias o meu nome, atenienses,
foi a minha sabedoria. Que espécie de sabedoria é essa? Aquela
que é, por assim dizer, a sabedoria humana propriamente dita.
Pois é dessa, possivelmente, que eu sou verdadeiramente dotado.
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Sócrates
(469-399), filósofo grego, em cujo testamento a cultura do espírito
identifica, geralmente, o mais alto acontecimento humano, antes
do Cristianismo. Não resta nada escrito de sua obra. O que dele
se conhece deve-se aos discípulos que guardaram seus diálogos e
sua lições imortais de sabedoria, especialmente Platão e Xenofonte.
Os diálogos platônicos parecem cenas vivas, arrancadas à própria
realidade. A filosofia de Sócrates é inseparável de sua biografia.
Pois, fiel à moralidade de sua doutrina e à implacável armação dialética
de seu espírito, acusado de corromper a juventude, aceitou a sentença
iníqua e bebeu tranquilamente a cicuta da morte. É de sua "Apologia",
apud Platão, extremamente coincidente, de resto, com as memórias
de Xenofonte, o texto abaixo que hoje publicamos.
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