SOBRE A FILOSOFIA UNIVERSITÁRIA
Nos dois trechos que se seguem, Schopenhauer traça seu perfil,
contra a filosofia profissional e a teologia
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 1978
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ARTHUR
SCHOPENHAUER
Os fins estatais da filosofia universitária foram, porém,
os que propiciaram à Hegelharia um favor ministerial tão
ímpar. Pois, para ela o Estado era o "organismo ético
absolutamente perfeito", e ela fazia com que todo o fim da
existência humana se absorvesse no Estado. Poderia haver
uma melhor orientação para os futuros referendários
e, em breve, funcionários do Estado do que aquela segundo
a qual toda a sua essência e ser, como corpo e alma, pertenceria
completamente ao Estado, como a abelha à colméia,
e do que aquela, segundo a qual eles não teriam de buscar
outra coisa, nem neste nem num outro mundo, a não ser cooperar
como engrenagens úteis para manter em funcionamento a grande
máquina do Estado, este ultimus finis bonorum (1)? Portanto,
o referendário e o homem eram um e o mesmo. Essa era uma
autêntica apoteose do filisteísmo.
Mas a relação de tal filosofia universitária
para com o Estado é diferente de sua relação
para com a filosofia verdadeira e em si, que, sob esse aspecto,
poderia ser diferenciada, enquanto filosofia pura, daquela enquanto
filosofia aplicada. Ou seja, a filosofia pura não conhece
nenhum outro fim a não ser a verdade; donde se poderia
concluir que qualquer outro fim visado por seu intermédio
é pernicioso para ela. Sua meta superior é a satisfação
daquela nobre carência, por mim chamada de carência
metafísica, que é sentida íntima e vivamente
pela humanidade em todos os tempos, mas de modo mais forte quando,
como agora, a reputação da doutrina da fé
está cada vez mais baixa. Aliás, sendo adequada
e pensada em relação à grande massa do gênero
humano, a doutrina da fé só pode conter verdade
alegórica, que ela, todavia, tem de fazer valer como verdadeira
senso próprio (2). Porém, com a difusão cada
vez maior de toda espécie de conhecimento históricos,
físicos e mesmo filosóficos, aumenta o número
de homem para quem a verdade alegórica não pode
mais satisfazer, e esses exigem cada vez mais a verdade senso
próprio. Mas o que pode fazer diante desta demanda uma
marionete de cátedra "nervis alienis mobile"
(3)? O que mais se alcançará com a outorgada filosofia
de casaca ou com ocas construções de palavras, ou
mesmo com as verdades mais comuns e compreensíveis, transformadas,
pela verborragia, em inapreensíveis flores de retórica
que nada dizem? Ou ainda, o que mais se alcançará
com o absoluto "nonsense" hegeliano? E, por outro lado,
se de fato chegasse do deserto o honesto João, vestido
de peles e alimentado de gafanhotos, que, tendo ficado longe de
toda confusão e se dedicado, com coração
puro e total seriedade, à pesquisa da verdade e viesse
agora oferecer seus frutos, que recepção deveria
ele esperar daqueles negociantes de cátedras alugados para
os fins do Estado, que têm de viver da filosofia com mulher
e filhos, e cujo lema é primum vivere, deinde philosophari
(4)? Por causa disso, esses negociantes apossaram-se do mercado
e cuidaram para que ali nada valha a não ser aquilo que
eles deixam valer, pois méritos só existem, se eles
e sua mediocridade quiserem reconhecê-lo. É que eles
levam pelo cabresto a atenção do público,
de resto pequeno, que se ocupa com filosofia, pois esse mesmo
público não empregará seu tempo, fadiga e
esforço em coisas que não proporcionem deleite (como
as produções poéticas), mas sim instrução,
e instrução pecuniariamente infrutífera,
sem antes ter plena garantia de que tais coisas serão largamente
recompensadas. Ora, de acordo com a crença generalizada
de que quem vive de alguma coisa é também o que
dela entende, o público espera obter tal garantia dos especialista
que se portam confiantemente nas cátedras, compêndios,
diários e jornais literários como verdadeiros mestres
no assunto: são eles, pois, que degustam e escolhem aquilo
que é mais digno de atenção e seu contrário.
Oh, que será de ti, meu pobre João do Deserto, se,
como é de se esperar, aquilo que tu trazes não estiver
redigido. Segundo a convenção tácita dos
senhores da filosofia lucrativa! Eles te verão como alguém
que não compreendeu o espírito do jogo e ameaça
arruinar todos eles, como seu adversário e inimigo comum.
Mesmo se aquilo que trazes fosse a maior obra-prima do espírito
humano, jamais poderia encontrar clemência diante dos olhos
deles. Pois não estaria redigida ad normam conventionis
(5), logo não a modo de poderem torná-la objeto
de sua conferência de cátedra, para também
dela viver. De fato, não ocorre a um professor de filosofia
verificar se um novo sistema estreante é verdadeiro, mas
apenas se ele pode harmonizar-se com as doutrinas da religião
do Estado, com as intenções do governo e com as
opiniões dominantes da época. Depois disso, ele
decide sobre seu destino. Mas, não obstante, se o novo
sistema se impusesse, se despertasse a atenção do
público como instrutivo e contendo conclusões -
e fosse por este considerado digno de estudo -, nesta mesma medida
ele acabaria com a atenção, com o crédito
e, o que é ainda pior, com a vendagem da filosofia habilitada
para a cátedra. Di meliora (6)! Por isso, tal coisa não
pode ocorrer, e aí tem de ser um por todos e todos por
um. O método e a tática para isso é logo
posto à disposição por um instinto favorável
que é concedido a todo ser para sua preservação.
Ou seja, o refutar e contradizer uma filosofia que vai contra
a norma convencionais é muitas vezes uma coisa arriscada,
que não se deve ousar nem em último caso - sobretudo
onde se farejam méritos e virtudes que seguramente não
são alcançáveis pelo diploma de professor
-, pois desse modo as obras indexadas alcançariam notoriedade
e os curiosos acorreriam; mas então poderiam ser feitas
comparações extremamente desagradáveis e
o desenlace seria incerto. Unânimes, porém, como
irmãos de mesmo caráter e capacidade, os professores
universitários tratam tal produção inoportuna
como "non avenue". Com o ar mais despreocupado, tomam
o mais significativo como totalmente insignificante, o profundamente
pensado e presente por séculos como não merecedor
de discussão, para então sufocá-lo. Mordem
perfidamente os lábios e se calam, se calam com aquele
"silentium, quod livor indixerit", já denunciado
pelo velho Sêneca (7); mas enquanto se calam sobre isso,
gralham tanto mais alto em relação aos filhos abortivos
do espírito e às monstruosidades de seus camaradas,
com a consciência tranquila de que aquilo que ninguém
sabe, é como se não existisse, e de que as coisas
do mundo valem pela aparência e pelo nome, não por
aquilo que são. Sendo esse o método mais seguro
e menos perigoso contra méritos, gostaria de recomendá-lo
a todos os cabeças ocas que buscam seu sustento em coisas
para as quais é necessário o mais alto talento,
sem, todavia, me responsabilizar por suas consequências
posteriores.
No entanto, os deuses não devem ser invocados aqui de forma
nenhuma como num "inauditum nefas" (8): pois isso tudo
é apenas uma cena do espetáculo que temos diante
dos olhos em todas as épocas, em todas as artes e ciências,
ou seja, a velha luta daqueles que vivem para a coisa com aqueles
que dela vivem, ou daqueles que a são, com aqueles que
a representam. Para os primeiros, ela é o fim para o qual
sua vida é mero meio; para os outros, o meio, isto é,
a penosa condição para a vida, o bem-estar, a fruição,
a felicidade - as únicas coisas nas quais reside sua verdadeira
seriedade: porque aqui está traçado, pela natureza,
o limite de sua esfera de ação. Quem quiser ver
isso exemplificado e conhecê-lo mais de perto, deve estudar
a história da literatura e ler as biografias dos grandes
mestres em todo engenho e arte. Ali verá que isso foi assim
em todos os tempos e compreenderá que assim também
há de permanecer. No passado, isso é reconhecido
por todos; no presente, por quase ninguém. As páginas
resplandecentes da história da literatura são, quase
sem exceção, as trágicas. Em todas as disciplinas,
elas nos mostram como, via de regra, o mérito teve de esperar
até que os tolos tenham deixado de sê-lo, o banquete
tenha chegado ao fim e todos tenham ido para a cama: é
então que o mérito se levanta da noite profunda,
como um fantasma, para finalmente, ainda que como sombra, tomar
seu lugar de honra usurpado.
Entretanto, temos de lidar aqui apenas com a filosofia e seus
representantes. Em primeiro lugar, constatamos que, desde sempre,
muitos poucos filósofos foram professores de filosofia
e, proporcionalmente, ainda menos professores de filosofia, filósofos.
Daí se poderia dizer que, do mesmo modo que os corpos idioelétricos
não são condutores de eletricidade, também
os filósofos não são professores de filosofia.
De fato, esse cargo põe mais barreiras que qualquer outro
para aquele que pensa por si próprio. Pois a cátedra
de filosofia é de certo modo um confessionário público,
onde se faz profissão de fé coram populo (9). Logo,
para a obtenção efetiva de conhecimentos mais fundamentais
ou mesmo mais profundos, ou seja, para se tornar verdadeiramente
sábio, quase nada é tão contrário
quanto a coerção constante de parecer sábio,
o alardear de pretensos conhecimentos diante de alunos ávidos
em aprender e o ter respostas prontas para todas as questões
imaginárias. Mas o pior é que, a todo pensamento
que de algum modo ainda ocorra a um homem em tal situação,
logo lhe assalta a preocupação de saber se tal pensamento
poderia convir às intenções dos superiores:
isso paralisa tanto seu pensar, que os próprios pensamentos
já não ousam ocorrer. A atmosfera de liberdade é
indispensável à verdade. Sobre a exceptio, quae
firmat regulam (10), ou seja, sobre o fato de Kant ter sido professor,
já mencionei acima (11) o necessário, e acrescento
apenas que também a filosofia de Kant ter-se-ia tornado
mais elevada, decidida, pura e bela, se ele não tivesse
se investido naquela cátedra. Embora ele, mui sabiamente,
tivesse mantido o filósofo o mais longe possível
do professor, já que não expunha sua própria
doutrina na cátedra (12).
Fazendo, porém, uma retrospectiva dos pretensos filósofos
que entraram em cena no meio século depois de encerrada
a atividade de Kant, infelizmente não vejo nenhum a quem
eu pudesse dizer em meu louvor que sua verdadeira e total seriedade
tivesse sido a pesquisa da verdade: pelo contrário, observo
todos eles (ainda que nem sempre tenham clara consciência)
pensando em aparecer, em causar efeito, em se impor e até
mistificar, esforçando-se para obter o aplauso dos superiores
e, em seguida, dos estudantes - sempre com o objetivo último
de deglutir o rendimento da coisa com mulher e filhos. Mas isso
está bem de acordo com a natureza humana, que, como toda
natureza animal, só conhece como fins imediatos o comer,
o beber e o cuidado da cria, mas que recebeu ainda, como apanágio
especial, a ambição de brilhar e aparecer. Ora,
a primeira condição para produções
verdadeiras e genuínas na filosofia, como na poesia e nas
belas artes, é, pelo contrário, uma inclinação
completamente anômala que, contra a regra da natureza humana,
põe, no lugar do esforço subjetivo para o bem próprio,
um esforço plenamente objetivo, dirigido para uma produção
que lhe é exterior, esforço que, por isso mesmo,
é chamado apropriadamente de excêntrico e também
às vezes escarnecido como quixotismo.
Sobre
a Teologia
...
o tema essencial e próprio da metafísica entre os
filósofos de cátedra é a explicação
da relação de Deus para com o mundo: as mais prolixas
discussões sobre este tema enchem seus manuais. Acreditam-se
empregados e pagos, sobretudo, para tornar claro este ponto, e
aí é divertido ver o quão sisuda e eruditamente
falam do absoluto ou de Deus, portando-se bem seriamente como
se de fato soubessem algo do assunto: isso faz lembrar a seriedade
com que as crianças brincam. Então surge, a cada
feira de livros, uma nova metafísica que, consistindo num
relatório minucioso sobre o bom Deus, explica como ele
tem passado e como chegou a fazer, parir ou, sabe-se lá
como, produzir o mundo - dando a impressão de que recebem
notícias fresquinhas sobre ele de meio em meio ano. Alguns
caem, porém, numa confusão de efeito altamente cômico.
É que têm de ensinar um Deus inteiramente pessoal,
tal como aparece no Velho Testamento - e eles sabem disso. Mas,
por outro lado, há cerca de quarenta anos o panteísmo
de Espinosa, segundo o qual a palavra Deus é sinônimo
de mundo, tornou-se predominante e virou moda entre os eruditos
e até entre os apenas cultos: ora, tampouco desejam rejeitar
inteiramente esta doutrina, não se permitindo, porém,
estender a mão até esta iguaria proibida. Então
procuram ajudar-se com seu recurso habitual: frases obscuras,
emaranhadas e confusas, palavrório oco, em que se viram
e reviram penosamente; vêem-se, então, alguns asseverar
de um só fôlego que Deus é total, infinitamente
e de longe, bem de longe, diferente do mundo, mas ao mesmo tempo
a ele estreitamente ligado e unido, ou seja, que está enterrado
nele até as orelhas: por isso, fazem-me lembrar todas as
vezes do tecelão Botton do "Sonho de uma Noite de
Verão", que promete rugir como um apavorante leão,
mas, ao mesmo tempo, trinar tão docemente, como só
um rouxinol pode fazê-lo. Executando isso, caem na mais
extraordinária confusão: é que afirmam não
haver nenhum lugar para Deus fora do mundo; mas já que
também não podem usá-lo no mundo, fazem o
roque com ele de lá para cá e de cá para
lá, até perder as duas posições (13).
Por outro lado, a "Crítica da Razão Pura",
com suas provas a priori da impossibilidade de todo conhecimento
de Deus, é para eles uma tolice pela qual não se
deixam enganar: sabem para que existem. A objeção
de que não se pode pensar nada mais não-filosófico
do que falar sem cessar sobre a existência de algo de que
não se tem comprovadamente nenhum conhecimento, e de cuja
essência não se tem nenhum conceito - é para
eles uma réplica impertinente: sabem para que existem.
Sou para eles, reconhecidamente, um dos que não merece
sua deferência e atenção, e, pela desconsideração
total das minhas obras, pretenderam evidenciar aquilo que eu sou
(se bem que, com isso, evidenciaram justamente aquilo que eles
são): como tudo que produzi durante trinta e cinco anos,
também será falar para as paredes se eu lhes dizer
que Kant não estava brincando, que a filosofia não
é nem jamais poderá ser, séria e efetivamente,
teologia, pois é antes algo total e completamente diferente
dela. Como todas as outras ciências são reconhecidamente
corrompidas pela intromissão da teologia, assim também
o é a filosofia, e, na verdade, em seu grau máximo,
como testemunha a sua história. Que isso valha até
mesmo para a moral, eu o demonstrei claramente na minha dissertação
sobre o fundamento dela (14). Por isso, esses senhores agiram
sorrateiramente também em relação a esta
obra, fiéis à sua tática de resistência
passiva. Ora, a teologia recobre com seu véu todos os problemas
da filosofia e torna, com isso, impossível não só
sua solução, como até mesmo sua compreensão.
Portanto, como se disse, a "Crítica da Razão
Pura" foi rigorosamente a carta de demissão da até
então ancilla theologiae (15), que, com isso, abandonou
para sempre o serviço de sua severa senhora. Desde então,
esta teve de contentar-se com um mercenário que veste ocasionalmente
o libré abandonado pelo antigo serviçal, apenas
para manter as aparências: como na Itália, onde tais
substitutos são vistos sobretudo aos domingos, e são
por isso chamados pelo nome de "domenichini".
Mas na filosofia universitária as críticas e argumentos
de Kant tiveram de soçobrar. Pois ali isso significa: "Hoc
volo, hoc iubeo, stat pro ratione voluntas" (16), a filosofia
deve ser teologia, mesmo que a impossibilidade disso fosse provada
por vinte Kantes; pois sabemos para que existimos: existimos in
maiorem Dei gloriam (17). Todo professor de filosofia é,
tanto quanto Henrique 8°, um defensor fidei (18) e reconhece
nisso sua primeira e principal vocação. Depois de
Kant ter cortado o nervo de todas as provas possíveis da
teologia - tão incisivamente que desde então ninguém
mais pode meter-se com elas -, o esforço filosófico,
em quase cinquenta anos, tem consistido nas diversas tentativas
de insinuar, sutil e astuciosamente, a teologia, e os escritos
filosóficos nada mais são, na sua maioria, do que
tentativas infrutiferas de reanimar um cadáver sem vida.
Assim, por exemplo, os senhores da filosofia lucrativa descobriram
no ser humano um consciência de Deus, que até então
tinha passado despercebida de todo mundo, e, encorajados pelo
seu acordo recíproco e pela inocência do público
mais próximo, jogavam com ela atrevida e temerariamente,
até que por fim seduziram os honestos holandeses da universidade
de Leiden, de tal forma que estes, tomando as tergiversações
dos professores de filosofia por progressos da ciência,
instituíram bem ingenuamente, no dia 15 de fevereiro de
1844, o concurso sobre a questão: "Quid statuendum
de sensu Dei, qui dicitur menti humanae indito" etc (19).
Em virtude de tal "consciência de Deus", aquilo
que todos os filósofos até Kant se esfalfaram para
provar seria algo imediatamente consciente. Mas que simplórios
deveriam ter sido todos aqueles filósofos de outrora, que
se esforçaram durante toda a sua vida para aduzir provas
a uma coisa da qual já somos conscientes, isto é,
a conhecemos mais imediatamente do que duas vezes dois quatro,
para o que ainda se exige reflexão. Querer provar tal coisa
seria o mesmo que querer provar que os olhos vêem, os ouvidos
ouvem e o nariz cheira. Mas então que rebanho irracional
não seriam os budistas, seguidores da principal religião
da terra segundo o número de seus adeptos? Seu zelo religioso
é tão grande que, no Tibete, quase um sexto dos
homens pertence à casta sacerdotal, passando a viver em
celibato, e sua doutrina da fé, embora suporte e apoie
uma moral altamente pura, elevada, caritativa e rigorosamente
ascética (que não se esqueceu dos animais, como
a moral cristã), não só é decididamente
ateísta, mas até recusa expressamente o teísmo.
A personalidade é um fenômeno que, aliás,
só nos é conhecido a partir de nossa natureza animal
e, por isso, dela separada, não é mais claramente
pensável: fazer de tal fenômeno origem e principio
do mundo é um enunciado que não entra imediatamente
na cabeça de todos, e menos ainda o fato de que ele já
estaria na cabeça de todos e já viveria na nossa
natureza animal. Em contrapartida, um Deus impessoal é
uma mera peta de professores de filosofia, uma contradictio in
adiecto, uma palavra vazia para satisfazer os que não pensam
ou para tranquilizar os vigilantes.
De fato, os escritos dos nossos filósofos universitários
respiram o mais vivo zelo pela teologia; e, ao contrário,
o menor pela verdade. Pois, sem recato diante dela e com uma audácia
inaudita, empregam-se e acumulam-se sofismas, insinuações,
distorções e asserções falsas, e são
até mesmo, como se disse acima, falsamente atribuídos,
ou melhor, exigidos da razão conhecimentos supra-sensíveis
imediatos - ou seja, idéias inatas -; tudo isso única
e exclusivamente para revelar a teologia: só teologia!
só teologia! teologia, a qualquer preço! Eu gostaria
de oferecer despretensiosamente à reflexão desses
senhores o fato de que, embora a teologia possa ser de grande
valor, conheço algo que ainda é sempre mais valiosa,
a saber, a honestidade - a honestidade, tanto no modo de vida
como no pensar e ensinar; eu não a venderia por nenhuma
teologia.
Mas no estado em que as coisas estão, quem tomou isso a
sério, junto com a " Crítica da Razão
Pura"; quem pensou honradamente e não possui teologia
para levar ao mercado, tem de sair perdendo diante daqueles senhores.
Mesmo se trouxesse a coisa mais excelente já vista pelo
mundo e servisse à mesa toda a sabedoria do céu
e da terra, eles, todavia, desviariam olhos e ouvidos se não
fosse teologia. Quanto mais mérito tiver o feito, mais
despertará, não a admiração, mas o
rancor deles, mais oporão a ele uma resistência determinadamente
passiva, mais pérfido será o silêncio com
que procurarão abafá-lo, mas, ao mesmo tempo, mais
altos os encômios que entoarão aos encantadores filhos
do espírito de seus camaradas ricos de pensamentos, para
que, com isso, não triunfe a voz da inteligência
e da sinceridade por eles odiada. Aliás, assim o exige,
nesta época de teólogos céticos e de filósofos
crédulos, a política daqueles senhores que, com
mulher e filhos, se nutrem da ciência, ciência a qual
uma pessoa como eu sacrifica todas as suas forças durante
toda a vida. Pois o que lhes importa, de acordo com a advertência
de seus altos superiores, é - cada qual na sua linguagem,
locução e disfarce - a filosofia como teologia especulativa,
e declaram, de forma bem ingênua, que a caça à
teologia é o alvo essencial da filosofia. Eles nada sabem
do fato de que se deve considerar o mundo (junto com a consciência
na qual ele se apresenta) como o único dado, o problema,
o enigma da antiga esfinge, diante da qual nos postamos com ousadia.
Eles ignoram, com esperteza, que a teologia, se desejar entrar
na filosofia, deve primeiro, como todas as outras doutrinas, apresentar
sua credencial, que será depois examinada no cartório
da "Crítica da Razão Pura", a qual mantém
ainda seu total prestígio junto a todos os pensadores,
nada tendo perdido dele, apesar das caretas cômicas que
os filósofos de cátedra de hoje esforçam
em lhe fazer. Portanto, sem credencial válida diante da
"Crítica", a teologia não obtém
permissão de entrada e não deve obtê-la nem
por ameaças, nem por astúcia, nem por mendicância,
alegando para isso que os filósofos de cátedra não
conseguem vender nenhuma outra coisa - então que façam
o favor de fechar sua butique. Pois a filosofia não é
igreja nem religião. A filosofia é um cantinho no
mundo acessível a poucos, onde a verdade, em toda parte
sempre odiada e perseguida, uma vez livre de toda pressão
e coerção, deve como que celebrar suas saturnais,
onde também o escravo pode falar livremente, ter até
prerrogativas e a última palavra; ela é o cantinho
onde a verdade deve dominar absolutamente sozinha, nada admitindo
a seu lado. Ora, já que o mundo todo e tudo nele é
pleno interesse e, na maioria das vezes, interesse mesquinho,
ordinário e ruim, só um cantinho deve decididamente
ficar livre dele e estar aberto tão-só ao conhecimento
das relações mais importantes e urgentes de todas
- isso é a filosofia. Ou se entende isso de outra forma?
Então, tudo é diversão e comédia "como
se tem frequentemente dado" (20). Certamente, para julgar
com base nos compêndios dos filósofos de cátedra,
deveríamos antes pensar que a filosofia seria um guia para
a devoção, um instituto para formar beatos; pois,
na maioria das vezes, a teologia especulativa é pressuposta
abertamente como o fim e o alvo essencial da questão, e
se navega para ela a todo pano. Mas é certo que todo e
qualquer artigo da fé causa um dano decisivo para a filosofia,
seja ele introduzido aberta e francamente nela, como acontecia
na escolástica, seja contrabandeando através de
petitiones principii, axiomas falsos, fontes internas de conhecimento
inventadas, consciências de Deus, provas ilusórias,
frases empoladas e galimatias, como é de uso hoje em dia,
porque tudo isso torna impossível a compreensão
clara, descompromissada e puramente objetiva do mundo e da nossa
existência, que é a primeira condição
de toda investigação da verdade.
Expor, sob o nome e firma da filosofia, mas em roupagens estranhas,
os dogmas fundamentais da religião do Estado, que é
depois intitulada com uma expressão digna de um Hegel -
"a religião absoluta" -, pode ser uma coisa muito
útil, desde que sirva para adequar melhor os estudantes
aos fins do Estado, como também firmar na fé o público
leitor; mas vender isso por filosofia é o mesmo que vender
uma coisa por aquilo que ela não é. Se isso e tudo
o que foi dito acima mantêm o seu avanço imperturbável,
a filosofia universitária tem de se tornar cada vez mais
uma remora para a verdade. Pois todos os filósofos estão
perdidos, quando se toma, como escala de seu juízo e fio
de prumo de suas proposições, outra coisa além
da verdade, verdade que é tão difícil de
alcançar mesmo com toda investigação e fadiga
da força espiritual mais elevada. Segue-se daí que
a verdade se torna uma mera "fable convenue", como Fontenelle
chama a História. Também nunca se dará um
só passo na solução dos problemas que nos
são colocados, de todos os lados, por nossa existência
tão infinitamente enigmática, se se filosofa segundo
um alvo predeterminado. Mas ninguém negará que este
seja o caráter genérico das diferentes espécies
da atual filosofia universitária.
Notas
1.
"O último fim dos bons" (NT).
2. "Em sentido próprio" (NT).
3. "Movida por fios alheios". Lohneysen indica que a
expressão é de Horácio, "Sermones",
2, 7, 82. (NT).
4. "Primeiro viver, depois filosofar". (NT).
5. "De acordo com a norma convencional". (NT).
6. "Deus me livre!" Segundo Lohneysen: Virgilio, "Georgica",
3,513. (NT).
7. "Silêncio que a inveja impôs". Sêneca,
"Epistulae", 79. (NT).
8. "Crime inaudito". (NT).
9. "Na presença do povo". (NT).
10. "Exceção que confirma a regra". (NT).
11. Em trecho anterior ao da presente tradução".
(NT).
12. C. Rosenkranz, "História da Filosofia Kantiana",
pág. 148. (NA).
13. De uma confusão análoga é que surge o
elogio que me fazem alguns deles, para salvar a honra de seu bom
gosto, já que agora minha luz já não está
mais oculta: mas apressam-se em acrescentar ao elogio a afirmação
de que eu não tenho razão na questão principal,
pois se guardarão, como é de praxe entre eles, de
concordar com uma filosofia que é totalmente avessa a uma
mitologia judáica, magnificamente adornada e escondida
num palavrório empolado. (NA).
14. "Sobre o Fundamento da Moral" - escrito não
premiado pela Sociedade Real de Ciências da Dinamarca, em
Kopenhagen, 30 de janeiro de 1840. Esta dissertação
foi publicada junto com o escrito "Sobre a Liberdade da Vontade
nos "Dois Problemas Fundamentais da Etica" (S.W., tomo
4, pág. 481). Veja-se pág. 49, nota 64, e pág.
75, nota 86, da presente tradução (NT).
15. "Serva da teologia" (NT).
16. "Assim quero, assim decreto, que o querer fique no lugar
do fundamento". Segundo Lohneysen, a frase é de Juvenal,
"Saturarum", livro 4,223 (NT).
17. "Para a maior glória de Deus" (NT).
18. "Um defensor da fé" (NT).
19. "O que se pode determinar sobre a consciência de
Deus, que é dita inata à mente humana?" (NT).
20. Goethe, "Fausto", primeira parte, 529 (os versos
dizem: "WAGNER - Quantas vezes tenho ouvido declarar / Que
um comediante pode até um padre ensinar / FAUSTO - Pois
sim, sendo também um padre um comediante; / Como se tem
frequentemente dado". Trad. Jenny Klandin Segall, obra citada,
pág. 46 (NT).
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Filosofia
como ascese, busca da verdade e libertação
O ensaio "Sobre a Filosofia Universitária" faz
parte da obra "Parerga e Paralipomena", publicada em 1851,
portanto mais de trinta anos depois de "O Mundo como Vontade
e Representação" que, segundo Schopenhauer, é
sua "obra capital".
Esse texto põe em questão a atividade dos filósofos
da época conhecida como pós-kantiana. As três
figuras mais proeminentes do Idealismo alemão, Fichte, Schelling
e Hegel, aí figuram como objeto das críticas ásperas
e até injuriosas do "Kaspar Hauser da Filosofia",
epíteto que Schopenhauer tanto apreciava. Eram para ele "os
três sofistas", já que recebiam honorários
para ensinar filosofia.
Na primeira metade do século 19, Hegel e Schelling de fato
dominam o cenário filosófico alemão, destacando-se
nas universidades, ao contrário de Schopenhauer cujo insucesso
nos meios acadêmicos é notório.
Afastando-nos um pouco do tom panfletário, da virulência
dos ataques contra os professores de filosofia, como um possível
sintoma do ressentimento de Schopenhauer pelo silêncio em
torno de sua filosofia, fica evidente a concepção
bem própria da filosofia, central no texto. Schopenhauer
exige dos filósofos e da filosofia independência radical
diante da Religião, do Estado e dos interesses materiais
quotidianos. É necessário também salientar
o elo estabelecido pelo autor entre os interesses do Estado e uma
filosofia que oculta dogmas; pois, através da filosofia "serva
da Teologia" transparecem objetivos de dominação
política. Daí a exortação a uma volta
a Kant que teria, com a "Crítica da Razão Pura",
posto fim às pretensões da teologia especulativa.
Os dois textos que apresentamos aqui foram extraídos da primeira
tradução deste ensaio em português, a ser publicada
na íntegra na revista "Discurso", do Departamento
de Filosofia da Universidade de São Paulo. (MLC).
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