Pensando
bem, parece ridículo que a gente se preocupe com um espaço
de tempo tão curto. Temer tanto, quando nossa vida ou a
de outra pessoa se encontra em perigo, ou situar na tragédia
o terror dramático causado pela morte, é uma coisa
pouco séria.
O excessivo apego à vida é uma cegueira e uma insensatez,
e não tem outra explicação senão a
circunstância de que todo o nosso ser é uma vontade
de viver. A existência, embora com sua brevidade e insegurança,
e mesmo sendo amarga como é, é nosso bem supremo
e, assim, a vontade de viver é, por sua essência,
inconsciente e cega. A inteligência não patrocina
semelhante amor à vida. Ao contrário: -trabalha
por combatê-la, deixando claro o escasso valor da existência,
e contradizendo, dessa forma, o temor da morte.
Quando a razão domina, e o homem desafia tranquilamente
e com serenidade a morte, qualificamos sua atitude de nobre e
grande, e celebramos então o triunfo da inteligência
sobre a cega vontade de viver que, apesar de tudo, é a
medula essencial de nossa existência. Quando, pelo contrário,
a inteligência cede na luta, quando o homem deseja a vida
a qualquer preço e se defende desesperadamente da morte,
que vê, aproximar-se, desesperado com sua chegada, as pessoas
sentem por ele certo desprezo. Seu comportamento, entretanto,
não é mais do que uma submissão à
essência universal dos homens e das coisas.
Poderíamos, eventualmente, perguntar: - como é que
o amor sem limites à vida e a aspiração de
conservá-la por todos os meios e por todo o tempo possível,
podem ser julgados sentimentos vis e desprezíveis? Como
é que os prosélitos de qualquer religião
declaram os que temem a morte indignos de suas crenças,
se a vida é um dom dos deuses, pelo qual devemos agradecimentos
à sua bondade suprema? Como é que pode parecer,
neste caso, uma atitude nobre e grande, desdenhar esse bem?
Essas
considerações nos demonstram:
1° - que a vontade de viver é a essência íntima
do homem;
2°
- que essa vontade, em si, é inconsciente e cega;
3°
- que a inteligência é, primitivamente, um princípio
estranho a essa vontade a ela se junta como um complemento;
4°
- que a inteligência está em conflito com a vontade
de viver e que nosso entendimento lhe dá razão quando
ela vence essa vontade.
Admito
que se o terror da morte se deve à idéia que temos
do não-ser, igual terror nos deveria dominar ao pensar-mos
na época em que ainda não existíamos, pois
não há dúvida de que o "não-ser"
que segue à morte não pode ser diferente do "não-ser"
que precede a vida e, portanto, não pode ser mais temível.
Enquanto não existíamos, a eternidade seguia seu
curso. Isto, porém, não nos assusta. O que achamos
cruel e insuportável é o pensamento de que depois
do curto interregno desta existência efêmera, deve
vir uma segunda eternidade, durante a qual também não
existimos. Será que esta ânsia de viver decorre do
fato de havermos gostado da vida, de tê-la achado amável?
Indiscutivelmente, não, pois, em geral as provações
suportadas nos deveriam predispor antes a lamentar profundamente
o paraíso perdido do "não-ser".
A ilusão que abrigamos acerca da imortalidade da alma une-se
sempre a de um mundo melhor, o que demonstra claramente que o
nosso aqui não vale grande coisa. O problema sobre o que
nos acontecerá depois da morte já foi exaustivamente
tratado, em livros e conversas, e tratado mais do que o problema
do que teríamos sido antes de nascer. Todavia, teoricamente,
ambos os problemas despertam o mesmo interesse e oferecem a mesma
razão de ser, e quem resolvesse um deles, não teria
dúvidas quanto à solução do outro.
Quantas admiráveis declamações temos ouvido
sobre a repugnância de admitir que o espírito humano,
que abarca o Universo, e que, em suas sublimes concepções,
se eleva tão alto, há de acabar sepultado com o
corpo. Mas o que ninguém se lembra de dizer é que
esse espírito humano deixou passar toda uma eternidade
antes de aparecer sobre a Terra, com todos os seus atributos,
nem que o mundo, durante toda essa eternidade, tenha passado sem
ele.
Não conheço problema que mais se imponha a qualquer
inteligência livre de preocupações arbitrárias
do que este: - antes de meu nascimento, transcorreu um tempo infinito.
Que era eu, durante todo esse tempo?... A eternidade sem mim,
"a parte post", não deveria ser mais aterradora
do que a eternidade sem mim "a parte ante", uma vez
que uma não se diferencia da outra senão pelo sonho
efêmero da vida... "A morte não nos importa"
- ensina Epicuro. E explica: - "Enquanto existimos, a morte
não existe, e quando ela chega, não existimos nós".