MAX SCHELER E A PESSOA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 18 de fevereiro de 1978.
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A
pessoa humana, como figura de direito privado, deve ser precedida
pela pessoa humana como cidadão. E isto é assim
porque o Estado só alcança o sentido mais alto de
sua existência numa ordenação racional da
vontade de vida e numa adequada distribuição dos
bens da vida (da comunidade de um povo). O direito privado, ao
contrário, se situa, em princípio, numa ordenação
racional dos valores do útil e do agradável, subordinados
a uma série de valores vitais, ou na vontade dirigida no
sentido desses valores.
De acordo com nossa hierarquia de valores, o sujeito econômico
tem de subordinar-se à pessoa humana como cidadão,
de tal modo que todas as leis sobre a simultaneidade dos processos
econômicos não representam para a pessoa humana enquanto
membro do Estado, isto é, para sua vontade como cidadão,
senão uma simples soma de regras técnicas, aplicáveis
a fins que variam livremente.
A visão kantiana do problema, por mais profunda que seja,
não consegue atenuar o erro contido em seus conceitos e
fundamentos, nos quais se identifica de um modo falso a pessoa
simplesmente social com a pessoa em geral, a pessoa-razão
com a pessoa espiritual-individual, e, além disso, a idéia
de pessoas racionais, cuja igualdade é o pressuposto de
todo direito, e ainda a pessoa-cidadão. Diante disso, não
pode haver dúvida de que o núcleo da pessoa espiritual-individual
e a pessoa-razão, como a pessoa-social em geral,
representam unicamente um conteúdo abstrato, conteúdo
que existe graças à sua referência a certas
esferas e funções é superior a todo
Estado e a toda mera personalidade (a pessoa-cidadão),
e tanto como sua salvação última independe
por completo de sua relação com o Estado. A idéia
de Estado, inclusive, está fundada na solidariedade de
pessoas espirituais-individuais e não num contrato
entre elas sendo, antes, uma possível comunidade
de amor recíproco.
Considerada do ponto de vista do individuo, da pessoa pura e simples,
essa mesma idéia de Estado está fundada numa possível
"comunidade de vida" não é uma sociedade
de fins baseada em simpatia vital. E assim, a comunidade
é a matéria do Estado. Como membro de um reino de
pessoas espirituais livres, sempre individual e desigual, tanto
em si como em seu valor, a pessoa, efetivamente, está,
sob todos os aspectos, acima do Estado e até podemos dizer
acima do direito.
Por isto, pode o Estado, numa medida extrema, exigir o sacrifício
da vida de uma pessoa na guerra por exemplo mas nunca
o sacrifício da pessoa, de um modo geral isto é,
de sua consciência moral e de sua salvação
nem mesmo uma entrega absoluta da pessoa. Assim como a pessoa
econômica fica submetida ao Estado, o núcleo da pessoa
espiritual-individual está acima do Estado em geral. E
toda a esfera da pessoa íntima está fora do Estado.
Até mesmo com relação à pessoa íntima,
porém, vigora o princípio da solidariedade originária,
e também a pessoa íntima (a simples pessoa humana)
é o núcleo espiritual na área mais íntima
da unidade do ser, do ser sensível, vital, espiritual,
que o homem representa. Por isso, o homem, como pessoa relativamente
íntima, tem relação com outro homem na liberdade
de ser próprio foro, acima e além do Estado, prescindindo
da tirania de um pacto social, para a efetividade de uma sociedade
fundada sobre o amor.
Assim como o pequeno centro de vida unitário, no indivíduo,
restringe e ordena, de acordo com seus objetivos, todas as apetências
que se dirigem ao útil e ao agradável, também,
em proporções maiores, o Estado faz o mesmo com
a sociedade e com o homem enquanto cidadão. Dessa forma,
deve-se considerar um ato positivo da vontade do Estado o fato
de ele abster-se de intervenções de sua vontade
nos processos econômicos, regulados legalmente de acordo
com entendimentos de um consenso geral.
Se, por exemplo, o Estado faz uma política de livre cambismo,
em vez de uma política protecionista, não o faz
por força do princípio de livre-cambismo, mas apenas
porque entende oportuna, no momento, a abstenção
no campo da livre concordância.
Trata-se, assim, de uma ingenuidade e de uma simplificação
infantil dos problemas em confronto, a tentativa de encontrar
interpretações diversas para os mecanismos do Estado,
segundo posições do individualismo ou do universalismo
orgânico. Para uns, o Estado é uma realidade, um
valor superindividual por sua própria natureza, ao qual
o indivíduo deve fazer todos os sacrifícios. Essa
interpretação, tipicamente alemã, do valor
do Estado, é a mesma dos povos antigos. Mas o Cristianismo
eliminou para sempre, de uma vez por todas, aqueles conceitos
sufocantes do valor do Estado.
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Max Scheler (1872-1928) nasceu em Munique e morreu em Frankfurt.
Depois de ensinar em Munique e em Jena, ocupou a catedra de Filosofia
em Colônia. Influenciado inicialmente por Euken, trabalhou
o pensamento fenomenológico com Husserl, em cujo famoso "Anuário"
se editou sua obra principal: "O Formalismo na Etica e a Etica
Material dos Valores". Não se conteve, porém,
no campo de especulação da fenomenologia e a aventura
maior de seu pensamento é o debate em torno dos valores,
com o qual funda a mais importante doutrina da axiologia de nosso
tempo. Trabalhou também intensamente o pensamento do saber
humano. O texto que hoje publicamos é de sua "Etica"
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