SÃO BOAVENTURA E AS LUZES

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 2 de fevereiro de 1978

Entre as luzes que iluminam o homem, há uma luz exterior, que é a luz da arte mecânica; uma luz interior, a luz do conhecimento sensitivo; uma luz, também interior, a luz do conhecimento filosófico, e uma luz superior, a luz da graça e da Sagrada Escritura. A primeira luz ilumina as figuras artificiais; a Segunda, as formas naturais; a terceira, as verdades intelectuais; a quarta e última, as verdades que conduzem à salvação eterna.
A primeira luz, que ilumina as figuras artificiais, exteriores ao homem e inventadas para remédio das necessidades corporais, denomina-se luz da arte mecânica. Por ser de natureza servil, e estar abaixo do conhecimento filosófico, deve chamar-se, com toda propriedade, de luz inferior. Esta luz se diversifica segundo as sete artes mecânicas que Hugo de S. Vítor distingue em seu Didascálico, a saber: - a arte dos tecidos, as armas, da agricultura, da caça, da navegação, da medicina e do teatro. A suficiência dessa divisão pode mostrar-se assim: toda arte mecânica se destina ao prazer ou à comodidade, a desterrar a tristeza ou a indigência, ao proveito ou ao deleite, conforme o verso de Horácio, segundo o qual os poetas juntam o útil ao agradável.
A arte mecânica, que serve ao prazer e ao deleite, é o teatro, arte que encerra em si toda sorte de jogos e diversões, ora nos cânticos, ora nos instrumentos musicais, ora nas representações cênicas, ora nos movimentos rítmicos do corpo. Se a arte se faz para a comodidade e proveito do corpo, poderá incluir os vestidos e o alimento. O vestido pode ser confeccionado de material suave e brando, como na arte da lã; ou de material duro e resistente, como nas vestes próprias para a guerra, em que se fabricam roupas até de metal, de pedra e de madeira.
Mas se a arte mecânica se aplica ao alimento, isto poder ser feito de diversas formas. Pois temos a arte da agricultura, que nos dá os alimentos vegetais, enquanto a caça nos dá os alimentos animais. A arte da comida pode apresentar muitas variedades, na multiplicação e na produção, através da agricultura, ou na preparação, como na caça, com as diversas formas de condimentar, de combinar as bebidas e os temperos, e nisso são hábeis os pasteleiros, os cozinheiros e os taberneiros.
A arte mecânica é complementar as nossas necessidade materiais, e nela se incluem os transportes e a medicina, uns transportando os alimentos e outras coisas, outra preparando xaropes, poções e unguentos para a cura das enfermidades, ou amputando membros, segundo as indicações da cirurgia.
A segunda luz que nos ilumina é a dos sentidos. E assim como os elementos da natureza são cinco - a água, o ar, o fogo, a terra e a quinta-essência - dispomos de cinco sentidos para a percepção e o conhecimento
sensorial de todos eles.
A terceira luz que ilumina a investigação das verdades inteligíveis é a luz do conhecimento filosófico, que se chama luz interior, porque investiga as causa íntimas e ocultas das coisas. E isto se faz por meio das ciências e da verdade natural, impressas no homem pela própria natureza. Essa luz se divide em: racional, natural e moral. A suficiência desta divisão se evidencia pelos três modos seguintes: primeiro, há a verdade dos discursos, a verdade das coisas e a verdade dos costumes. A filosofia racional considera a verdade do discursos; a natural, a verdade das coisas; a moral, a verdade dos costumes.
Em Deus, ser supremo, é preciso considerar as razões de causa eficiente, formal, ou exemplar e final, porque "é causa do existir, razão do entender e norma do viver". Da mesma forma, na iluminação da filosofia, pois esta ilumina para conhecer as causas do ser. Isto, na filosofia natural, ou física. Na filosofia lógica, ou racional, se buscam as razões do entender. E na filosofia moral, ou prática, se busca a norma do viver.
A luz do conhecimento filosófico ilumina a faculdade intelectiva de três maneiras: no comportamento, estabelecendo a moral; nas coisas próprias da existência, estabelecendo o que é natural; e finalmente, na interpretação da própria vida, estabelecendo a atividade que chamaremos de discursiva, pela qual o homem se comunica consigo mesmo e com os outros. Deste modo, o homem fica iluminado no que se refere à verdade da vida, à verdade da ciência e à verdade da doutrina.
A quarta luz, que ilumina acerca da verdade sobrenatural, é a luz da Sagrada Escritura, que se chama superior porque conduz às coisas superiores, mostrando o que está acima da razão. Esta vem do Pai das Luzes, não por investigação humana, mas por inspiração divina.


São Boaventura (1221-1274), que se chamava João de Fidanza, foi o primeiro dos grandes filósofos da ordem franciscana, e representa uma transição entre a tradição anterior, de Platão e Santo Agostinho, e o novo espírito do século XIII, que será dominado pela presença de Aristóteles. Foi discípulo de Alexandre de Halles em Paris, onde teve cátedra de 1248 a 1225. Foi grande amigo de Santo Tomás. A Igreja lhe deu o título de doutor seráfico. Sua obra mais importante é o "Comentário às Sentenças". Mas sua doutrina está expressa com maior vivacidade em obras mais breves, como o "Itinerário da Mente para Deus", do qual é o texto que hoje publicamos. (Trad. Do original latino "Itinerarim Mentis ad Deum" - Ed. "Ad Claras Aguas" - Por Gerardo Mello Mourão).


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