SANTAYANA E A VERDADE
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 8 de março de 1978
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Quando
eu sou falsamente acusado, ou quando sou apresentado como se pensasse
uma coisa que não penso, tenho de rebelar-me contra essa
contradição às evidências do conhecimento
que tenho de mim mesmo. E quando o acusador afirma que eu é
que sou o mentiroso, induzindo uma terceira pessoa a possivelmente
acreditar nele e não em mim, passando a acusar-me também,
tomo consciência de que pode alastrar-se contra mim uma
versão que mascara a verdadeira face dos fatos.
Deve se concluir, então, claramente, que há um tipo
abrangente de descrição para cada fato, que aqueles
que o relatam tal como aconteceu apenas o repelem em parte, enquanto
os mentirosos, ao contrário, sempre o contestam e deformam,
pelo menos em parte.
Uma reflexão um pouco mais profunda pode me convencer de
que o próprio mentiroso deve reconhecer o fato real que
está deturpado, ao menos em parte. Da mesma forma, a boa-fé
e a memória honesta, mesmo quando absolutamente irrepreensíveis,
não podem ser uma garantia fiel da reprodução
da verdade dos fatos, uma vez que estão sujeitas às
vacilações próprias do conhecimento. A descrição
exemplar de qualquer fato, que nem eu nem qualquer homem pode
reproduzir com exatidão absoluta - é que é
a verdade verdadeira sobre aquele fato.
A essência da verdade parece, assim, situada claramente
numa área de disputa. E uma consequência desse acidente,
do ponto de vista da própria verdade, a circunstância
em que as pessoas podem mais facilmente assumir a autoridade de
seu conhecimento - uma consequência desse acidente, dizíamos,
é que a verdade frequentemente parece ser inseparável
do antagonismo de opiniões que se rivalizam entre si.
Costuma-se dizer que se não houvesse nenhuma opinião
e, em consequência, nenhum erro, não haveria verdade.
Pode-se supor que isto significa que nada pode ser correto ou
incorreto, senão ser apenas uma proposta de julgamento
a respeito de um fato específico, e de que a mesma reconstituição
do fato que torna correta uma verdade torna, "ipso facto",
errônea qualquer outra versão diferente.
A verdade é frequentemente usada em sentindo abstrato,
como uma "correção", ou seja, como uma
qualidade que todos os julgamentos corretos possuem em comum,
e uma outra palavra, talvez "fato" ou "realidade",
deveria ser usada para definir esse tipo de descrição
compreensiva do objeto a que se ajustam os julgamentos corretos.
Um fato, porém, não pode ser apenas sua própria
descrição. E quanto à palavra "realidade",
no sentido de uma coisa existente, também não pode
designar uma descrição, pois uma descrição
é apenas uma essência, e não uma existência.
Os fatos são transitórios, e todos os componentes
da existência a que se refere um julgamento definitivo são
também transitórios. E quando eles "decorreram",
isto é, se inseriram no passado, a única coisa que
subsiste é sua essência, que, sendo parcialmente
recuperada e referida a eles num julgamento retrospectivo, pode
tornar verdadeiro esse julgamento.
As opiniões são falsas ou verdadeiras enquanto repetem
ou contradizem alguma parte da verdade sobre os fatos que têm
em mira. E essa verdade sobre os fatos é o tipo de descrição
compreensiva a seu respeito - algo que se desenrola no domínio
da essência de qualquer fato presente dentro dos limites
do tempo e do espaço que ocupa. Pois uma descrição
compreensiva inclui também todas as irradiações
daquele fato, isto é, toda aquela perspectiva do mundo
de fatos e do domínio da essência, obtida quando
se toma esse fato como um centro e uma reflexão de qualquer
outra coisa que lhe diga respeito.
A verdade sobre qualquer fato é, portanto, infinitamente
ampla, embora sua extensão seja mais limitada, por assim
dizer, quando se parte dela para fatos sempre mais novos ou para
idéias cada vez menos relevantes. O domínio, o reino
da essência é o clarão que se expande de um
fato ou a penumbra que ele provoca...
A palavra "verdade", creio, deve ser reservada àquilo
que cada pessoa espontaneamente julga ser a verdade através
da descrição completa de um fato em todos os seus
aspectos. A verdade não é uma opinião subjetivamente
fiel. Pois a limitação do alcance a que, em última
análise, estão sujeitas todas as opiniões,
mesmo as mais completas e mais cuidadosas, pode ser obviamente
verificada, uma vez que sempre se dá precedência
a este ou aquele aspecto, e sempre se adota uma perspectiva particular.
A verdade é o campo cruzado por várias opiniões
corretas, em vários sentidos, e nunca uma opinião
única.
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Santayana
- filósofo norte-americano, nasceu em Madri em 1863.
Viveu desde cedo nos Estados Unidos, estudou em Harvard e ensinou
Filosofia na América e na França. Publicou um grande
número de obras em que se destaca a originalidade de suas
doutrinas estéticas. Exerceu grande influência nos
círculos filosóficos contemporâneos pela fusão
do pragmatismo epistemológico com o materialismo metafísico.
Havia começado sua carreira de escritor pela poesia, que
abandonou para dedicar-se inteiramente à Filosofia. John
Dewey considera sua obra como a mais alta contribuição
americana à Filosofia, desde Emerson. O texto que hoje publicamos
é extraído da seleção "The Philosophy
of Santayana", organizado por Irwin Edman, a Columbia University.
Santayana morreu em 1952.
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