S. AGOSTINHO E AS DUAS CIDADES
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 01 de fevereiro de 1978
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Caim,
o primeiro fundador da Cidade Terrena, foi fratricida, porque,
vencido pela inveja, matou seu irmão Abel, cidadão
da Cidade Eterna, que era peregrino nesta terra.
Esta é a razão pela qual ninguém deve admirar-se
de que, tanto tempo depois, na fundação daquela
cidade que havia de chegar a ser cabeça da Cidade Terrena
de que temos falado, cidade que haveria de ser senhora e soberana
de tantos povos e de tantas nações (Roma), se haja
chegado à condição daquilo a que os gregos
chamam de arquétipo - isto é, uma imagem de todas
as outras cidades. Pois também em Roma, como conta o poeta,
referindo-se à mesma desgraça, foi de um sangue
fraternal que se regaram as muralhas em torno das quais se fundou
originalmente a cidade. Na verdade, segundo lembra a História,
Roma foi fundada quando Rômulo matou seu irmão Remo.
Ambos eram cidadãos da Cidade Terrena, e os dois pretendiam
a glória da fundação da República
Romana. Mas juntos, dividida entre dois, não seria tão
grande a glória de cada um. A hipótese de um só
fundador daria gloria maior, sem ter que ser dividida com o outro
a grandeza que tocava a um só. Pois o que queria a glória
do senhorio e do domínio, teria menos domínio e
menos senhorio, na medida em que um parceiro de governo compartilhasse
desses privilégios.
Assim, para não ter que diminuir seu poder e para concentrar
em suas mãos todo o comando e todo o senhorio, desembaraçou-se
do companheiro, tirando-lhe a vida e pervertendo com esta impiedade
e malvadeza as coisas que melhor teriam sido feitas se não
se tivesse perdido a inocência.
Mas os irmãos Caim e Abel não tinham entre si o
tipo de ambição que é comum entre outros
homens, isto é, a ambição pelas coisas terrenas.
Não houve propriamente inveja entre eles. Caim matou Abel
apenas para aumentar seu poder pessoal, temendo uma diminuição
desse poder quando ambos reinavam e eram senhores.
Abel não pretendia nenhum poder na cidade fundada pelo
irmão, e este o matou por outro tipo de inveja, que não
a que ocorre frequentemente entre os homens: a inveja diabólica
que apaixona os maus contra os bons, pela única razão
de que os bons são bons e os maus são maus.
De forma alguma se atenua a paixão da bondade pelo simples
fato de que alguém também seja bom. O que é
bom não concorre nem disputa contra o bom. Uma pessoa boa
não diminui a bondade da outra, pelo fato de exercerem
juntas a virtude da bondade. Pelo contrário: o convívio
da bondade alarga entre os que a possuem a posse e o patrimônio
desse bem, que é como uma espécie de patrimônio
que se torna tanto maior quanto mais numerosos forem os sócios
que a possuem. E não apenas maior no conjunto, mas maior
para cada um deles.
Na verdade, só não podem desfrutar da posse e do
domínio da bondade aqueles indivíduos que não
desejam que outras pessoas também possa desfrutar do mesmo
bem. Da mesma forma, tanto maior, mais ampla e mais abundante
será para cada um a posse da bondade e da felicidade, quanto
maior e mais amplo for o número do que também as
possuem. Pois quanto mais uma pessoa possui bondade e a felicidade,
mais deseja e estima a companhia do outro na posse desse bem.
Dessa forma, a desavença que separou Rômulo e Remo
constitui uma demonstração viva da forma pela qual
a Cidade Terrena se desune, se divide e se destrói a si
mesma. O que aconteceu entre Caim e Abel, por sua vez, nos mostra
claramente o tipo de inimizade que há entre as duas cidades,
isto é, entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens.
Os maus não sustentam guerras apenas entre si, destruindo-se
uns aos outros. Também se suscitam guerras dos maus contra
os bons. Mas bons com os bons, se são perfeitos, não
podem nunca combater entre si. É certo, todavia, que os
que ainda não são perfeitos, não podem nunca
combater entre si. É certo, todavia, que os que ainda não
são perfeitos, os que estão apenas a caminho da
perfeição, podem também às vezes entrar
em conflito entre si, da mesma forma que uma pessoa às
vezes entra em desacordo consigo mesma. Pois, até num mesmo
homem, acontece que "a carne deseja contra o espírito
e o espírito contra a carne".
Desse modo, a concupiscência espiritual pode lutar contra
a concupiscência carnal, da mesma forma como lutam entre
si os bons e os maus, ou, pelo menos, as concupiscência
carnais dos bons, que ainda não são perfeitos. E
isto, da mesma forma como entre si se conflitam os maus com os
maus, até que chegue o resultado salvador, que é
a última vitória
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Santo
Agostinho (354 - 430) representa, na história do pensamento,
a maturidade da dogmática cristã e o primeiro estabelecimento
de uma filosofia orgânica fundada sobre as colocações
do cristianismo. Seu pensamento é também um momento
decisivo da história da humanidade, com uma significação
insubstituível: pois, com ele se fecha o ciclo do pensamento
da antiguidade greco-latina, e se abre a inauguração
do mundo cristão da Idade Média. Era cartaginês,
filho de um magistrado pagão e de uma cristã. Teve
um filho chamado Adeodato. Depois de uma vida dissoluta, entregou-se
a filosofia. Conviveu com os maniqueus, e conheceu, em Milão,
Santo Ambrósio, a quem deve a sua conversão. Também
seu pai converteu-se no fim da vida, e foi canonizado: é
São Patrício. Sua mãe é Santa Mônica.
Destacam-se em sua obra as "Confissões" e o tratado
"Sobre a Cidade de Deus", com a teoria das duas cidades,
do qual é extraído o texto que hoje publicamos (Traduzido
do original latino "De Civitate Dei", por Gerardo Mello
Mourão).
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