SAINT-SIMON E AS ELITES
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 9 de novembro de 1977
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Suponhamos
que a França subitamente perca 50 de seus melhores cientistas,
matemáticos, poetas, pintores, músicos, escritores;
imaginemos que perca ademais cinquenta engenheiros, arquitetos,
médicos, farmacêuticos, navegantes; que perca ainda
cinquenta de seus melhores banqueiros, duzentos de seus mais dinâmicos
homens de negócios, duzentos dos diligentes fazendeiros,
cinquenta dos melhores artesãos de cada especialidade,
perfazendo um total de três mil das figuras mais importantes
nas ciências, artes, negócios e artesanatos.
Estes são os mais essenciais produtores, os que dirigem
os empreendimentos mais importantes da nação, os
que contribuem para seus avanços no campo da ciência,
arte, cultura. Na realidade eles são a fina flor da nossa
sociedade, os que contribuem para a glória da França,
enriquecendo sua civilização e aumentando a prosperidade.
A nação tornar-se-ia um cadáver se os perdesse.
Cairia imediatamente numa posição de inferioridade
comparada com nações rivais e continuaria nessa
decadência até que na geração seguinte
as perdas pudessem ser reparadas. Mesmo assim, é preciso
observar, a natureza não é pródiga - gente
desta qualidade não aparece com frequência.
Agora, tentamos outra suposição. Imaginemos que
a França preserve todas estas três mil pessoas de
gênio do campo da arte, ciências e negócios
mas por infelicidade perca Sua Alteza o irmão do rei, e
que a fatalidade não satisfeita nos prive do Duque D'Angoulame,
do Marquês de Berry, do Conde de Bourbon e outras esplêndidas
figuras da nossa corte. Suponhamos ainda que nossa desgraça
se amplie e fiquemos privados destes grandes engalanados oficiais
da casa real, os ministros, os conselheiros de Estado, os magnos
juizes, marechais, cardeais, altos funcionários, governadores,
prefeitos e vice-prefeitos e mais dez mil ricos proprietários
que vivem a vida dos nobres.
Esta terrível calamidade certamente iria ferir os franceses,
porque somos um povo sensível que não pode apreciar
com indiferença a súbita desaparição
de tão considerável grupo de compatriotas.
A perda de tantas figuras exponenciais, porém, seria um
golpe apenas sentimental e emocional, sem nenhuma consequência
política para o Estado. Em primeiro lugar, seria extremamente
fácil preencher estas vagas. Há inúmeros
franceses que poderiam preencher a importante função
de ser irmão do rei, há quantidades incalculáveis
de concidadãos que poderiam substituir o Duque D'Angoulame,
o Marquês de Berry, o Conde de Bourbon. Há inúmeras
francesas que poderiam ser princesas, damas-de-honra, viscondessas.
As ante-salas e gabinetes dos palácios franceses estão
repletos de cortesões, perfeitamente aptos para ocupar
o lugar dos nobres tão tragicamente desaparecidos. Quantos
obscuros funcionários são mais competentes do que
os atuais ministros? Quantos cidadãos são mais honestos
do que os gatunos que ocupam prefeituras? Quantos vigários
são mais puros e tementes de Deus que a elite eclesiástica?
E, quanto aos dez mil poderosos proprietários, seus herdeiros
não precisariam de tão longo aprendizado para substituí-los
plenamente.
A prosperidade e a grandeza espiritual da França podem
existir exclusivamente através do progresso nas ciências,
nas artes e nas profissões liberais. A elite nobre que
domina o Estado em nada contribui para nossa riqueza e nosso intelecto.
Ao contrário, ao invés de contribuir para a melhora
de nossas idéias, eles se ocupam de idéias triviais
ou conjecturais, tentando impô-las contra as ciências
e a filosofia.
Esta elite fere a prosperidade do país porque expande suas
posses de uma forma que não é útil à
melhoria do saber e do bem-estar.
Este jogo de suposições sublima o mais importante
fato da nossa atual vida política: mostra claramente, ainda
que indiretamente, que nossa organização e valorização
sociais são deficientes e que a nossa humanidade está
imersa em imoralidade.
Os cientistas, artistas, professores e artesãos são
únicos na sua utilidade à sociedade e custam praticamente
nada - tudo o que fazem é produto do seu esforço
e sua grandeza interior - mas são sufocados por burocratas
mais ou menos incapazes. Os que controlam as honrarias e a concessão
de privilégios, os que comandam a ascensão, estes
ganham suas posições por acidente de nascimento,
pela intriga, pela bajulação e, sobretudo, pela
corrupção.
Nossa sociedade está de cabeça baixo: consideramos,
como princípio fundamental, que os pobres devem ser cada
vez mais generosos e complacentes com os ricos e que, portanto,
as classes inferiores devam diariamente abrir mão de suas
necessidades para aumentar o luxo supérfluo dos ricos.
Ignorância, superstição, dissipação
são as características de nossos líderes,
enquanto homens humildes, hábeis e sábios são
empregados em posições inferiores ou como instrumentos.
O grupo mais imoral está encarregado de nos conduzir à
virtude e os maiores culpados estão encarregados de fazer
justiça.
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Henri
de Saint-Simon (1760-1825), aristocrata e pensador francês,
foi um típico representante do grupo chamado "socialista
utópico". Ainda que seus esquemas sejam considerados
irreais e grandiosos, suas posições em favor do desenvolvimento
social e intelectual e de uma melhor distribuição
de riqueza foram importantes contribuições para a
cultura ocidental. Acreditava que sua nova ordem poderia reviver
uma nova cristandade. A passagem acima, intitulada no original "Um
mundo de cabeça para baixo", faz parte do seu trabalho
"O Organizador", escrito em 1815. Foi utilizada versão
em inglês da Randam House, editada por Carl Cohen.
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