RUSSEL, OS FINS E OS MEIOS

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 1 de novembro de 1977

Para que a vida humana não se torne lúgubre e enfadonha é importante compreender que há coisas cujo valor independe da utilidade. O que for útil -porque é um meio para algo mais - e se o algo mais, por sua vez, não for meramente um meio, deve ser valorizado por si mesmo, pois de outro modo a utilidade será ilusória.
Conseguir o justo equilíbrio entre fins e meios é difícil e importante. Se nos ocuparmos em dar ênfase aos meios, devemos observar que a diferença entre um homem civilizado e um selvagem consiste muitíssimo numa diferença quanto ao peso atribuído a fins e meios na sua conduta. Um homem civilizado faz seguro de vida, um selvagem, não. A previdência, que implica fazer coisas desagradáveis, agora, em favor de coisa agradáveis, no futuro, é uma das características do desenvolvimento mental. Uma vez que a previdência é difícil e exige controle dos impulsos, os moralistas acentuam a sua necessidade e dão mais ênfase à virtude do sacrifício presente do que às excelências da recompensa subsequente. Devemos agir corretamente porque é certo assim agir e não à espera de recompensa, para ganhar o céu.
A pessoa que queira dar ênfase mais aos fins do que aos meios pode apresentar argumentos com o mesmo teor de verdade. É melancólico ver-se um rico homem de negócios que, devido ao excesso de trabalho e aborrecimentos na juventude, tornou-se dispéptico, de modo que só toma água e come pão enquanto seus convivas se regalam. As alegrias da riqueza que ele previu durante longos anos de canseira estão frustadas. Sem alguma consciência dos fins, a vida se torna vazia e descolorida.
As pessoas que se gabam de serem práticas são, na maioria dos casos, preocupadas com os meios. Certa vez, levaram-me, em Los Angeles, a visitar o bairro dos mexicanos. "Vagabundos ociosos", disseram-se. Mas, para mim, eles pareciam estar gozando a vida como uma dádiva. Muita gente nem sempre se lembra de que política, economia e organização social, em geral, pertencem ao reino dos meios e não dos fins. Nosso pensamento político e social é propenso à "falácia do administrador" -o hábito de considerar a sociedade como um todo sistemático, que se julga boa apenas quando é agradável de contemplar como modelo de ordem, um organismo planejado com as partes devidamente encaixadas uma nas outras.
Mas a sociedade não existe, ou pelo menos não deveria existir, para satisfazer tão somente uma inspeção externa, se não para proporcionar uma vida boa aos indivíduos que a constituem.
É no indivíduo, e não no todo, que o valor definitivo deve ser procurado. Uma sociedade boa é um meio para uma vida boa, para aqueles que nela vivem, e não alguma coisa que tenha qualidade distinta por si mesma.
Quando se diz que uma nação é um organismo, adota-se uma analogia que pode ser perigosa, se não forem reconhecidas suas limitações. O bem ou o mal que recaem sobre uma pessoa atingem essa pessoa como coisa única e total. Se tenho dor no dente ou no pé, sou eu que tenho dor. Quando um camponês é envolvido por uma tempestade de neve, não é seu governo que sente frio. Eis porque o homem, individualmente, é portador do bem e do mal. A crença de que pode haver bem e mal distribuídos por um conjunto de seres humanos é um erro, erro que leva diretamente ao totalitarismo e, portanto, perigoso.
Certo filósofos e estadistas pensam que o Estado possa ter virtude própria e não simplesmente ser meio de propiciar o bem-estar dos cidadãos. O Estado é um abstração que não sente prazer ou dor, não tem esperanças nem receios. O que julgamos seus propósitos são, na verdade, os propósitos dos indivíduos que o dirigem. Em vez do Estado, temos certas pessoas que têm mais poder do que as outras. A glorificação do Estado vem a ser a glorificação de uma minoria governante. Nenhum democrata pode tolerar teoria tão injusta.
Os homens a quem cabe a direção das vastas organizações tendem a ser demasiadamente abstratos em seus modos de ver e a esquecer como os seres humanos realmente são, tentando ajustá-los a sistemas em vez de ajustar sistemas aos homens.
A falta de espontaneidade, de que nossas sociedade altamente organizadas tendem a sofrer, relaciona-se com o controle excessivo sobre amplas regiões por autoridades distantes. Uma das vantagens a serem obtidas mediante a descentralização é que esta proporciona novas oportunidades para a esperança e para atividades individuais que encarnam esperanças. Se todos os nossos pensamentos políticos se concentrarem nos vastos problemas mundiais, é fácil o desespero. Ma se ficarmos com os problemas menores -da cidade, do sindicato, do escritório local do nosso partido- então poderemos ter expectativa de influência e um espírito esperançoso. E um espírito esperançoso é o que se torna mais necessário se quisermos encontrar um modo de tratar com êxito os problemas maiores. O êxito, mesmo que em pequena escala, é o melhor remédio para enfrentar este modo de sentir enfadado e pessimista.


Bertrand (Arthur William) Russel (1872-1970), pensador, matemático, reformista social e educador inglês. Seu primeiros trabalhos filosófico datam de 1900. Durante a Primeira Guerra Mundial tornou-se notório pelas posições pacifistas, que voltou a repetir com o mesmo empenho 50 anos mais tarde, condenando a intervenção americana no Vietnã e a corrida nuclear. Discípulo de Saint-Simon, sempre defendeu uma sociedade onde reinasse a justiça e a criatividade geral. Sua vasta obra inclui trabalhos de matemática, história, filosofia, educação, ciência, ética e política. O texto acima foi extraído de "Autoridade e Indivíduo", obra escrita em 1942 e publicada no Brasil com tradução de Natanael Caixeiro (Ed. Zahar, 1977).


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