ROUSSEAU E O DIREITO DA FORÇA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1978
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mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o dominador,
se não transforma sua força em direito. Daí o chamado direito
do mais forte, um direito tomado ironicamente na aparência, e
que realmente se estabelece como princípio. Como se poderá explicar
isto? A força é um poder físico: não vejo que moralidade pode
derivar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade,
não de vontade. Tudo mais pode ser um ato de prudência. Mas em
que sentido representa isto o cumprimento de um dever?
Suponhamos por um momento que seja um dever ceder ao direito da
força. Posso dizer que este conceito decorre uma confusão inexplicável,
pois desde o momento em que a força faz o direito, o efeito muda
com a causa: toda força que supera a razão ocupa o lugar do direito.
Desde que se pode desobedecer impunemente, pode-se fazê-lo legitimamente.
E como o mais forte tem sempre razão, não se trata senão de lutar
para ser sempre o mais forte.
Pois bem: que vale um direito que parece forte quando cessa a
força? Se se deve obedecer à força, não é necessário obedecer
por dever. E se nada força a obedecer, também não há obrigação
da obediência. Verifica-se, portanto, que esta palavra - dever
- não acrescenta nada a força, não significa nada no caso.
Obedecei aos poderes. Se isto quer dizer que se deve ceder diante
da força, o preceito é bom, mas supérfluo, até porque se torna
impossível de ser violado. Todo poder, reconheço, vem de Deus.
Mas de Deus vem tudo o mais também, inclusive a enfermidade, e
nem por isso estamos impedidos de chamar um médico. Quando um
bandido me surpreende no recanto de um bosque, não é apenas necessário
entregar-lhe a bolsa à força. Se eu puder escapar a essa contingência,
poderá alguém dizer que eu estava obrigado, em consciência, a
entregar a bolsa exigida? Pois, afinal, a pistola apontada contra
mim é uma força - um direito de força.
Convenhamos, pois, em que a força não faz o direito, e que não
temos obrigação de obedecer senão aos poderes legítimos. O problema
pode sempre ser colocado diante de nós.
Sendo certo que nenhum homem tem autoridade natural sobre seu
semelhante, e que a força nunca produz o direito, a base de toda
autoridade legítima entre os homens se situa no terreno das convicções.
Se um indivíduo, diz Grocio, pode alienar sua liberdade e tornar-se
dependente de um senhor, por que todo um povo não pode também
alienar a sua, e tornar-se dependente de um monarca? Ninguém se
confunda com as palavras. Alienar significar dar ou vender. Pois
bem: um homem que se faz escravo de outro, não se dá. No máximo,
está se vendendo para garantir seu sustento. Mas um povo - por
que se há de vender? Um monarca está longe de poder dar aos seu
súditos os meios de subsistência de que precisam. Ao contrário:
ele é que vive sustentado pelo povo. E, segundo Rabelais, um monarca
custa caro. De modo que quando um povo se entrega à submissão
a um senhor todo-poderoso, entrega-lhe igualmente os bens materiais
que pertencem à comunidade, que já não pode mais controlar nada.
Dirão que o déspota assegura a seus súditos a tranquilidade civil,
a segurança. Mas qual é a vantagem, se essa segurança tem custos
maiores do que a que podem construir com suas próprias mãos, e
se a ordem e a tranquilidade se transformam em sua miséria maior?
Viver tranquilo e seguro não quer dizer nada. Também se pode viver
tranquilo e seguro numa cadeia, e ninguém se atreverá a dizer
que isto é um bem. Os gregos encerrados na gruta do Ciclope viviam
tranquilos, esperando chegar a hora de serem devorados.
Dizer que um homem se subordina gratuitamente é dizer uma coisa
absurda e inconcebível; semelhante ato é ilegítimo e nulo, pelo
simples fato de que quem o pratica não está no uso de suas faculdades.
Dizer o mesmo de todo um povo é supor um povo de dementes: a demência
não faz o direito.
Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos
da humanidade, e até aos seus deveres. Tirar a liberdade à vontade
dos homens é uma demissão da própria moralidade de suas ações.
É uma indecência e uma contradição estipular, por uma parte, uma
autoridade absoluta, e por outra, uma obediência sem limites.
Um povo só poderia ter um senhor absoluto se o escolhesse por
unanimidade. Pois nem as maiorias têm direito de escolher um poder
absoluto, uma vez que cem pessoas que desejam submeter-se a um
déspota não têm o direito de impor seu propósito de escravidão
a outras dez que não o queiram. O Estado civilizado nasceu exatamente
disto: da necessidade de garantir a liberdade das pessoas, sob
a proteção de uma lei, decorrente de sufrágios populares que asseguram
aos homens e aos povos o respeito recíproco, a garantia da liberdade
que, estabelecendo a força do direito, distingue os seres humanos
das feras, que só conhecem o direito da força.
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Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra. Era filho de um relojoeiro,
de formação religiosa protestante. Converteu-se ao
catolicismo, voltou ao calvinismo e viveu profundas crises religiosas.
Considerado um precursor do romantismo na literatura, foi o primeiro
escritor a empregar a palavra romântico. Seus contemporâneos
leram com avidez sua obra, que domina a paisagem do pensamento político
europeu do século XVIII e constitui-se na mais alta presença
pedagógica das linhas do Estado moderno, considerado como
um pacto social entre as pessoas para a garantia da liberdade, dos
direitos e dos deveres de cada um. O texto aqui selecionado é
do mais famoso dos seus livros: "O Contrato Social".
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