ORTEGA E O VOTO

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 19 de janeiro de 1978.


Dizem que as instituições democráticas perderam seu prestígio. Mas é isso, exatamente, que precisa ser explicado. Pois nada mais estranho que a alegação de desprestígio da democracia e de sua instituição fundamental — o Parlamento.
Fala-se mal do Parlamento em toda parte: mas não há uma única sugestão séria de uma instituição que o substitua. Nem sequer existem perfis utópicos de outras formas de estado que, ao menos idealmente, pareçam preferíveis. Não se deve, pois, acreditar muito na autenticidade desse aparente desprestígio. Há aqui um erro de ótica que convém corrigir de uma vez por todas, porque é inquietante ouvir as inépcias que a toda hora se dizem a propósito do Parlamento. É claro que há toda uma série de objeções válidas ao modo de conduzir-se dos Parlamentos tradicionais. Mas examinando-as uma a uma, o que se verifica é que nenhuma delas autoriza a conclusão de que se deva suprimir o Parlamento. Ao contrário: todas levam, por via direta e evidente, à necessidade de reformá-lo. Pois bem: o melhor que humanamente se pode dizer de uma coisa é que necessita ser reformada, pois isso significa que é imprescindível e que é capaz de nova vida.
O automóvel atual saiu das objeções que se fizeram ao automóvel em 1910.
Mas a desestima vulgar em que caiu o Parlamento não procede dessas objeções. Diz-se, por exemplo, que ele não é eficaz. Devemos, então, perguntar: — Não é eficaz por quê? Pois a eficácia é a virtude que tem um instrumento para produzir uma finalidade. Neste caso a finalidade seria a solução dos problemas públicos em cada nação. Exigimos, por isso, dos que proclamam a ineficácia dos Parlamentos, que apresentem uma idéia clara do que seja a solução dos problemas públicos atuais. Se não o fizerem, se nem teoricamente conseguiram fazê-lo em país algum, não tem sentido acusar de ineficácia os instrumentos institucionais. Seria mais acertado recordar que nunca instituição alguma criou na História Estados mais formidáveis, mais eficientes, que os Estados parlamentares do século XIX. Trata-se de um fato tão indiscutível, que esquecê-lo demonstra franca estupidez.
Não se confunda, pois, a possibilidade e a urgência de reformar profundamente as assembléias legislativas para torná-las ainda mais eficazes, com declarar sua inutilidade. O desprestígio dos Parlamentos não têm nada a ver com seus notórios defeitos. Procede de outra causa, inteiramente alheia à sua natureza de instrumentos políticos...
A saúde das democracias, quaisquer que sejam seu tipo e seu grau, depende de um mísero detalhe técnico: o processo eleitoral. Tudo mais é secundário. Se o regime eleitoral é correto, se se ajusta à realidade, tudo vai bem; se não, embora o resto marche otimamente, tudo vai mal.
Roma, ao começar o século I antes de Cristo, é onipotente, rica, não tem inimigos pela frente. Apesar disso, está a beira do perecimento, porque se obstina em conservar um regime eleitoral estúpido.
Um regime eleitoral é estúpido quando é falso.
Votava-se na cidade. Os moradores do campo não podiam votar, nem os que viviam espalhados pelo mundo. Como as eleições eram impossíveis, organizavam-se grupos de desordeiros, com veteranos do exército ou com atletas do circo, que se encarregavam de destruir as urnas. Sem apoio do autêntico sufrágio, as instituições democráticas ficam no ar, as palavras ficam no ar.
"A República não era mais do que uma palavra".
A expressão é de César. A magistratura perdera a autoridade. Os generais de esquerda ou da direita —Mário e Sila— chafurdavam na arrogância de ditaduras vazias que não levavam a nada... Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo...
Correspondem ao século passado a glória e a responsabilidade de haver libertado as multidões à face da História. Fato tão exuberante nos leva, se não quisermos ser dementes, a chegar às seguintes consequências:
— Primeiro, que a democracia fundada na liberdade e na técnica é o tipo superior de vida até hoje conhecido; segundo, que esse tipo de vida pode não ser o melhor imaginável, mas qualquer coisa de melhor que imaginemos terá de guardar as características desses princípios; terceiro, que é suicida qualquer retorno a forma de vida inferiores às do século XIX...
O saber histórico é uma técnica de primeira ordem para conservar e continuar a velha civilização... O passado tem uma razão —sua razão. Se não a reconhecerem, ele pode começar a reclamá-la e a impor alguma razão que não tem. O liberalismo tem uma razão, e essa deve ser reconhecida per saecula saeculorum. Não tinha, porém, toda razão, e o que é preciso é separá-lo da razão que não tinha. Nosso mundo precisa conservar seu liberalismo essencial. Esta é a condição para superá-lo.


Ortega y Gasset (1883-1955), escritor, filosofo e ensaísta espanhol, foi considerado durante muitos anos uma espécie de reitor magnífico do saber e da cultura da Europa. Sua bibliografia é extensa. Participou ativamente da política da Espanha e da Europa em geral. Até hoje está vivo o prestígio de sua "Revista do Ocidente", onde se publicavam inéditos de Einstein e de Heidegger, de Kafka e de Herman Weil, de Kierkegaard e de Benedetto Croce. O texto que hoje publicamos é de passagens de um se seus livros clássicos, "A Rebelião das Massas", onde o mestre das "Meditaciones del Quijote" expõe os perigos da liberdade diante da ascensão das massas, seduzidas pelas ditaduras e pelos tecnocratas para a própria perdição. Epílogo dessa advertência foi sua famosa "Aula à Europa", conferência pronunciada sobre as ruínas fumegantes de Berlim, ao reinaugurar-se a Universidade da capital destruída pelos que ali desprezaram a liberdade (Trechos extraídos de "La Rebelión de las Masas" - 4ª edição, Espasa-Calpe Argentina).

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