NIETZSCHE E OS CIVILIZADOS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 10 de fevereiro de 1978.
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Friedrich
Nietzsche
Fiz um longo vôo pelo futuro e fiquei horrorizado. Ao olhar
em torno de mim, me dei conta de que o tempo era o meu único
companheiro. Tomei, então, apressadamente, o caminho de
volta: e cheguei até onde estão homens de hoje,
ao país da civilização. Pela primeira vez
olhei as pessoas com olhos de benevolência e com verdadeira
boa vontade. E que me aconteceu, então? Apesar do medo
que me invadiu, comecei a rir sem parar. Nunca meus olhos tinham
visto qualquer coisa de tão ridículo.
Eu ria, ria, mas na verdade sentia inseguros os pés e me
tremia o coração. E disse comigo mesmo: "Este
deve ser o país dos vasos coloridos". Pois, com as
faces e os membros pintados de mil maneiras, os homens atuais
me deixavam assombrados. E cercados por milhares de espelhos,
eram fascinados pela repetição das cores com que
se pintavam. Na verdade, os homens de nossa atual civilização
não precisam de usar máscaras melhores do que suas
próprias faces. Quem os poderia reconhecer?
Estão pintados com os sinais do passado e com outros sinais,
e desta forma se disfarçam e se ocultam de todos os que
desejam entendê-los. E ainda que alguém soubesse
examiná-los por dentro, quem poderia assegurar que eles
tenham alguma coisa por dentro? Pois parece que são feitos
de cores e de papéis colados. Todos os tempos e todos os
povos olham com revolta através de seus disfarces. Todos
os costumes e todas as crenças se confundem em suas atitudes.
Se alguém lhes retirar os disfarces, os retoques, as cores
e as atitudes, não restará mais do que um espantalho.
Na verdade, eu sou, eu mesmo, um pássaro espantado por
tê-los visto alguma vez despidos e sem pinturas, e fugi,
aterrorizado, porque eram como um esqueleto que acenava afetuosamente
para mim. Parece-me preferível descer às profundas
do inferno e confundir-me entre as sombras do passado, pois as
sombras do passado têm mais consistência do que o
homem desta civilização.
A minha íntima amargura é que não posso suportar
os homens da civilização atual nem vestidos nem
nus. Tudo o que perturba no futuro e tudo que pode afugentar um
pássaro espantado está ainda aquém do indignado
espanto que causam esses homens da civilização.
Eles dizem: "Somos inteiramente realistas, não
temos crenças nem superstições". E com
isso enchem o peito. Mas nem chegam a ter peito.
De todo modo é verdade. Sendo apenas pinturas de homens,
não podem crer em nada. Pois são apenas a pintura
das coisas em que o homem acreditava quando era homem. São
uma refutação da própria fé, e neles
se dá a ruptura de todos os pensamentos. Eu não
tenho outra maneira de designar esses homens que se dizem realistas,
senão de incríveis. Pois todas as épocas
conflitaram umas contra as outras em seus espíritos. E
os sonhos e as deblaterações de todas as épocas
eram mais reais do que a vigília dessas pessoas.
São estéreis, e por isso lhes falta a fé.
Aquele, porém, que devia criar, tinha sempre também
seus sonhos de verdade, como um sinal das estrelas, e tinha fé
na fé. Mas os de agora são portas entreabertas por
onde, a qualquer momento, vão entrar os coveiros. Nem merecem
outra divisa senão esta: "Tudo deve desaparecer".
Como eles estão diante de mim, os homens estéreis
nem sequer percebem que não têm uma costela de onde
um deus possas tirar outro ser. E dizem: "Será
que um deus poderia tirar alguma coisa de mim enquanto durmo?
Certamente, o bastante para formar uma mulher, mas a pobreza das
minhas costelas é impressionante". Esta é a
maneira de falar de muitos homens importantes. Quanto a mim, os
homens atuais me assombram, especialmente quando se espantam consigo
mesmos.
Pobre de mim, se não pudesse rir de seus assombros e se
tivesse que tragar todas as repugnâncias que oferecem. Tenho
coisas mais sérias em que pensar e cargas mais pesadas
sobre meus ombros. Os insetos e as moscas que pousam sobre eles
não aumentam o peso de meu fardo. Nenhum desses indivíduos
é capaz de aumentar a minha carga e a minha fadiga. Meu
desejo deve subir acima de meus contemporâneos. Olho do
alto de todos os píncaros, procurando uma pátria,
uma terra natal. Mas em nenhuma parte as encontro. Percorro todas
as cidades e passos por todas as portas.
Os contemporâneos, pelos quais um dia se inclinou meu coração,
me parecem todos estranhos e me provocam o riso. Vejo-me expulso
das pátrias e das terras natais. Já não amo,
pois, senão o país de meus filhos, a terra incógnita
entre mares longínquos. No rumo dessa terra se enfunam
incessantemente as velas de meu barco. Quero compensar em meus
filhos a deficiência de ser filho de meus pais. E quero,
com o futuro, compensar a pobreza do presente.
Assim falava Zaratustra.
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Friedrich
Wilhelm Nietzsche (1844-1900),
filho de um pastor protestante, estudou filologia clássica
na Universidade de Bonn, depois em Leipzig, onde conheceu Wagner,
estabelecendo-se entre os dois uma influência recíproca
e uma amizade profunda que seria dramaticamente rompida. Sua extensa
obra é considerada um dos momentos culminantes do gênio
humano, desde a nova definição de valores da "Origem
da Tragédia". Depois de romper com Wagner e Schopenhauer,
fazendo o que chamou de "cura anti-romântica", começou,
também segundo sua própria expressão, a "enterrar
sua confiança na moral". Entra, então, numa fase
de crítica a todos os valores universais e absolutos. E em
sua terceira fase que chega às iluminações
de um pensamento original, de que "Zaratustra" é,
sem dúvida, o marco inicial. É deste livro, "Also
Sprach Zaratustra", o texto que hoje publicamos, traduzido
do original alemão por Gerardo Mello Mourão.
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