A INSPIRAÇÃO SEGUNDO NIETZSCHE
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 14 de julho de 1985.
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Alguém,
neste final do século dezenove, tem nítida noção daquilo que os
poetas de épocas fortes denominavam inspiração? Se não, eu o descreverei.
Havendo o menor resquício de superstição dentro de si,
dificilmente se saberia afastar a idéia de ser mera encarnação,
mero porta-voz, mero medium de forças poderosíssimas. A idéia
de revelação, no sentido de que subitamente, com inefável certeza
e sutileza, algo se torna visível, audível, algo que comove e
transtorna no mais fundo, descreve simplesmente o estado de fato.
Ouve-se, não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um
pensamento reluz como relâmpago, com necessidade, sem hesitação
na forma jamais tive opção. Um êxtase cuja tremenda tensão
desata-se por vezes em torrente de lágrimas, no qual o passo involuntariamente
ora se precipita, ora se arrasta; um completo estar fora de si,
com a claríssima consciência de um sem-número de delicados tremores
e calafrios que chegam às pontas dos pés; um abismo de felicidade,
onde o que é mais doloroso e sombrio não atua como contrário,
mas como algo condicionado, exigido, como uma cor necessária em
meio a tal profusão de luz; um instinto para relações rítmicas
que abarca imensos espaços de formas e longitude, a necessidade
de um ritmo amplo é quase a medida para a potência da inspiração,
uma espécie de compensação para sua pressão e tensão... Tudo ocorre
de modo sumamente involuntário, mas como que em um turbilhão de
sensação de liberdade, de incondicionalidade, de poder, de divindade...
A involuntariedade da imagem, do símbolo, é o mais notável; já
não se tem noção do que é imagem, do que é símbolo, tudo se oferece
como a mais próxima, mais correta, mais simples expressão. Parece
realmente, para lembrar uma palavra de Zaratustra, como se as
coisas mesmas se acercassem e se oferecessem como símbolos ("aqui
todas as coisas vêm afagantes ao encontro da tua palavra, e te
lisonjeiam, pois querem cavalgar no teu dorso. Em cada símbolo
cavalgas aqui até cada verdade. Aqui se abrem para ti as palavras
e arcas de palavras de todo o ser; todo o ser quer vir a ser palavra,
todo o vir a ser quer contigo aprender a falar"). Esta é a minha
experiência da inspiração; não duvido que seja preciso retroceder
milênios para encontrar alguém que me possa dizer: "é também a
minha".
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Extraído
de "Ecce Homo"; tradução de Paulo Cesar Souza, a ser publicada pela
Editora Max Limonad.
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