NICOLAU DE CUSA E A IGNORÂNCIA

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 1978

Homem algum, nem mesmo o mais aplicado, chegará a um grau de sabedoria mais alto do que aquele que se torna doutíssimo sobre a ignorância que lhe é própria. Ninguém é mais sábio do que aquele que se reconhece como o mais ignorante dos homens. É por isso que me disponho a escrever um tratado sobre a douta ignorância. Pois não há doutrina maior que a sabedoria da ignorância. E quando digo que essa doutrina é a maior de todas, quero deixar claro que não há outra que a supere em grandeza. Pois, na verdade, uma coisa é o máximo quando nenhuma coisa pode ser maior do que ela. O máximo é, assim, a plenitude, nenhum outro poderá tê-la, pois aquele que a tem absorveu todas as qualidades.
Desta forma, ser o máximo é também ser o único, isto é, ser uma unidade. Porque se a unidade é universalmente absoluta, fora de toda relação e restrição, é claro que não há nada que se lhe oponha, uma vez que é o máximo absoluto. Portanto, o máximo absoluto é algo único, que é, ao mesmo tempo, todas as coisas, pois todas as coisas estão nele, exatamente porque é o máximo. E como nada se lhe pode opor, acontece que nele está o mínimo de tudo, uma vez que reúne em si todas as coisas. E ainda, por ser absoluto, é também o agente total de tudo, não sofrendo influência de nenhuma outra coisa, mas influenciando a todas elas. Diante disso, é forçoso reconhecer que este máximo absoluto não pode ser outra coisa senão um Deus.
Como o máximo absoluto é a entidade pela qual todas as coisas são o que são, assim, também é dele que vem a unidade universal. E como nele se encontra a unidade universal, também nele se reúne o universo em sua pluralidade. Desta forma, esse ser máximo e absoluto, que abarca todas as coisas em sua unidade universal, tem em si tudo o que provém do absoluto. Todas as coisas estão nele, e ele está em todas as coisas, mas não tem subsistência fora da pluralidade em que está, pois sua existência é exatamente a soma dessa pluralidade.
Não existe proporção entre o finito e o infinito. Desse modo, quando se encontra uma coisa que supera outra, e uma coisa que é superada por outra, não estamos diante do absoluto nem do infinito, pois o absoluto e o infinito não podem ser medidos e, pois, não podem superar nem ser superados. Superar e ser superado são propriedades das coisa finitas, entre as quais há sempre diferenças de grau, de qualidade ou de medida, por maiores que sejam as semelhanças que aparentem.
Assim é que por mais semelhantes que sejam as dimensões das coisas que podem ser medidas, haverá sempre uma diferença. Por isso, o entendimento finito não pode compreender com precisão a verdade das coisas por meio da semelhança, pois a verdade não é e não pode ser uma aproximação da realidade, um "mais ou menos". É indivisível. Só a verdade pode dar a medida da verdade, assim como só um círculo pode dar a verdade de si mesmo, uma vez que seu ser consiste numa realidade indivisível.
Desta forma, a inteligência, que é limitada e que, por isso, não é a verdade, não poderá nunca compreender com precisão a verdade. A inteligência está para a verdade assim como o polígono está para o círculo: quanto maior for o número dos ângulos do polígono inscrito, tanto mais será semelhante ao círculo. Mas nunca chegará a ser igual, embora os ângulos se multipliquem até o infinito, a não ser que assuma a identidade do círculo.
É evidente, portanto, que nós não sabemos e não podemos saber outra coisa sobre a verdade, senão que ela mesma é incompreensível em sua plena exatidão, uma vez que verdade é uma necessidade absoluta, que não pode ser mais nem menos, aparecendo à nossa inteligência como uma possibilidade. A qualidade das coisas, pois, que é a verdade dos seres, não pode ser alcançada em sua pureza, e embora tenha sido objeto de investigação de todos os filósofos, nunca foi encontrada por ninguém.
Quanto mais profundamente doutos sejamos nessa ignorância, tanto mais nos aproximaremos da própria verdade. Boecio afirmava que toda doutrina na verdade estava compreendida no número e na quantidade. É certo que as matemáticas constituem uma ajuda extraordinária para o conhecimento propriamente dito. Deste, em sua plenitude, não se pode ter noção senão através do reconhecimento de nossa irremediável ignorância. E quando me decidi a escrever um tratado sobre a douta ignorância, é porque, na verdade, não há nada mais douto, isto é, mais ciente da essência da verdade que a própria ignorância.


Nicolau de Cusa (1401-1464) cujo verdadeiro nome era Nicolau Chryspffs ou Krebs, nasceu em Cusa, na Alemanha. Foi o primeiro filósofo da Renascença, um autêntico antecipador da Idade Moderna, embora sua obra se inscreva ainda na cronologia medieval. Viveu em Heidelberg, Roma, Colônia e Traier, onde foi secretário do cardeal Orsini, humanista ilustre que o introduziu no gosto dos clássicos. Tornou-se um erudito excepcional. Tomou parte do Concílio de Basiléia. Feito cardeal, chegou a ser uma das mais importantes figuras da Igreja em seu tempo. Deixou uma longa obra filosófica e científica, e seu livro mais importante e mais famoso é o tratado "De Docta Ignorantia", no qual os estudiosos vêem as raízes da teoria da Relatividade de Einstein e da Teoria da Incerteza de Heisenberg. É dessa obra o texto que hoje apresentamos em tradução do latim de Gerardo Mello Mourão.


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