MUMFORD E AS CIDADES

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 10 de dezembro de 1977

A cidade, tal como é encontrada na História, é o ponto da máxima concentração do vigor e da cultura de uma comunidade. É o lugar onde vão encontrar-se os raios emitidos por muitos focos separados de vida, com proveitos tanto em eficiência como em significação social. A cidade é a forma e o símbolo de um conjunto integrado de relações sociais: é a sede do templo, do mercado, do tribunal, da academia. Na cidade, os bens da civilização encontram-se multiplicados e diversificados. Nela, a experiência humana toma a forma de sinais exequíveis, símbolos, padrões de conduta, sistemas de ordem. É na cidade que se encontram os produtos da civilização, os rituais.
As cidades são produto da terra. Refletem a sagacidade do camponês ao dominar a terra. As cidades são a representação dessa vida estável que começa na agricultura permanente - uma vida que se vive com auxílio de abrigos permanentes, utilidades permanente. Todas as fases da vida no campo contribuem para a existência das cidades. Aquilo que sabem o pastor, o madeireiro e o mineiro vem a ser transformado e espiritualizado, através da cidade, em elementos duráveis da herança humana.
As cidades são produto do tempo. São os moldes dentro dos quais a existência dos homens se resfria e condensa, dando forma duradoura, por via da arte, a momentos que, de outra forma, findariam com os vivos. Na cidade, o tempo torna-se visível: os edifícios, monumentos, vias públicas - mais claramente que os documentos escritos. Graças ao fato material da preservação, nas cidades, o tempo desafia o tempo, deixando uma impressão da sua passagem e da sua grandeza até na mente dos ignorantes e insensíveis. Por força da sua diversidade, a cidade furta-se à tirania de um presente único e à monotonia de futuro igual. Através da sua complexa orquestração do tempo e do espaço, não menos que através da sua divisão de trabalho, a cidade assume o caráter de uma sinfonia.
As cidades nascem das necessidades sociais do homem e multiplicam tanto seus costumes como seus meios de expressão. No meio urbano os choques mecânicos produzem resultados sociais e as necessidades sociais podem tomar a forma de idéias e invenções que levarão industrias e governos a seguir novos canais de experiência.
A cidade é um fato da natureza, tal como uma gruta ou um formigueiro. Mas é também uma obra de arte, consciente. A mente toma forma na cidade e as formas humanas condicionam a mente. A cidade é uma comunidade física para a existência coletiva como símbolos dos propósitos coletivos. A língua - maior obra de arte do homem - se enriquece nas cidades. Quando a cidade deixa de ser um símbolo de arte e de ordem, passa a agir de maneira negativa: a exprimir, a ajudar e a tornar mais universal a desintegração.
A natureza de uma cidade não pode ser procurada apenas na sua base econômica - a cidade é, antes de mais nada, um resultado social. O que caracteriza uma cidade é a sua complexidade de propósitos. Ela representa a possibilidade máxima de humanização do ambiente natural e da "naturalização" da herança humana.
Por uma dessas maliciosas reviravoltas da História foi precisamente no período da abundância, da desintegração social e de experiência políticas desconcertantes que o mundo explodiu num crescimento desordenado. Formas de vida que os mais sábios ainda não haviam compreendido, os mais ignorantes avidamente lançaram-se a construir. Como sempre, os ignorantes totalmente despreparados, por uma questão de velocidade, ocuparam o lugar dos sábios.
O resultado não foi uma confusão temporária, mas a cristalização do caos. A desordem petrificou-se nos cortiços e bairros operários. O revestimento físico mecanizado ganhou propriedade sobre o núcleo vital.
Hoje, começamos a sentir que a melhoria das cidades não é a matéria para pequenas reformas unilaterais: a tarefa de traçar uma cidade implica na tarefa maior de reconstruir uma civilização. Precisamos alterar os métodos de vida parasitários e predatórios, ora tão relevantes. Nosso problema é coordenar, com base nos valores humanos mais essenciais do que a ambição de poder e sede de lucros uma série de funções sociais e modos de vida.
Nada é permanente: nada perdura que não seja a vida, a capacidade de nascer, renovar-se. Quando, mais uma vez em nossa civilização, a vida rebelar-se para vencer a confiança inexorável da barbárie, a cultura das cidades será, a um tempo só, instrumento e meta.


Lewis Mumford (1895), urbanista e pensador americano. Escreveu mais de 25 livros enfocando não apenas a cidade e seu formato, mas encarando-a como produto primordial da nossa civilização. Ideologicamente ligado aos socialistas fabianos ingleses - que pretendiam um socialismo humanista - Mumford foi o primeiro a perceber e condenar a desumanização da cidade moderna e a mitologia da máquina. Ao contrário dos urbanistas esteticistas, Mumford preocupava-se menos com o desenho e mais com o modo de vida nas cidade. Ao propor novos modelos e esquemas à convivência coletiva, pretendia na realidade alterar a própria sociedade. Escrevia copiosamente, sem repetir-se, inflamado pelo otimismo utópico e com o vigor de uma cultura muito ampla e universal. Entre seus trabalhos destacam-se "Transformação do Homem", "A Cultura das Cidades", "A Cidade na História" e "O Futuro Urbano". Sua última obra, publicada em 1976, "Descobertas e Tesouros", é uma espécie de autobiografia (Ed. Harcourt Brace Jovanovitch). O idealismo de Mumford não o impediu de adotar atitude sadicamente renovadora e muito imaginosa. Seus projetos para cidade como Santa Fé, Newark, New Jersey, São extremamente simples e bem concebidos. Inspirado em Tomas Morus, achava que as cidades deveriam ter seu tamanho limitado. Seu amor à natureza levou-o a imaginar uma integração na figura das cidades-jardins. O trecho abaixo é a introdução, abreviada, de "A Cultura das Cidades" (Ed. Itatiaia, 1961), com tradução de Neil da Silva.


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