MORUS E A UTOPIA II

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 3 de maio de 1978.


Os utopianos não somente afastam o crime pelas leis penais, como incitam à virtude com honrarias e recompensas. Estátuas são erguidas nas praças públicas aos homens de gênio e àqueles que prestaram à República serviços relevantes. Assim, a memória das grandes ações se perpetua e a glória dos antepassados é um aguilhão a estimular a conquista da posteridade e o incitamento ao bem.
Aquele que afronta um só magistrado perde toda esperança de exercer algum dia qualquer magistratura. Os utopianos vivem em família. Os magistrados não se mostram nem orgulhosos nem terríveis. São chamados "pais", e, realmente, destes têm a justiça e a bondade. Recebem com simplicidade as honras que às funções lhes são rendidas voluntariamente. Essas provas de deferência não constituem obrigação para ninguém. O próprio príncipe não se distingue da massa, nem pela púrpura nem pelo diadema, mas apenas por um feixe de trigo que traz à mão. As insígnias do pontífice reduzem-se a um círio que é levado à sua frente. As leis são em muito pequeno número e, não obstante às instituições.
O que os utopianos desaprovam especialmente nos outros povos é a quantidade infinita de volumes, leis e comentários, que, apesar de tudo, não são suficientes para garantir a ordem pública. Consideram como injustiça suprema enlear os homens numa infinidade de leis, tão numerosas que se torna impossível conhecê-las todas, ou tão obscuras que é impossível compreende-las. Não há advogados na Utopia. Os demandistas de profissão, que se esforçam por torcer a lei e decidir uma questão com a maior astúcia, foram dali excluídos. Os utopianos pensam que é preferível que cada um defenda sua causa e confie diretamente ao juiz o que teria a dizer a um advogado. Desta maneira, há menos ambiguidade e rodeio, e a verdade se descobre mais facilmente. As partes expõem seu negócio simplesmente, pois não há advogados para ensinar-lhes as mil artimanhas da chicana. O juiz examina e pesa as razões de cada um com bom senso e boa fé; defende a ingenuidade do homem simples e contra as calúnias do velhaco. Seria bem difícil praticar semelhante justiça nos outros países, enterrados num montão de leis, tão embrulhadas e tão equívocas.
De resto, todo mundo na Utopia é douto em direito; porque, repito-o, as leis são em muito pequeno número e a interpretação mais grosseira e mais material é admitida como a mais razoável e mais justa. As leis são promulgadas, dizem os utopianos, com a finalidade de que cada qual seja advertido de seus direitos e deveres. Ora, as sutilezas de vossos comentários são acessíveis a pouca gente e esclarecem apenas um punhado de sábios; — ao passo que uma lei claramente formulada, cujo sentido não é equívoco e se apresenta naturalmente ao espírito, está ao alcance de todos.
Que importa à massa, isto é, à classe mais numerosa e a que mais importa ter normas, se não há leis ou que as leis sejam estabelecidas de tal maneira embrulhadas, que para obter-se sua significação verdadeira se faça necessário um gênio superior, ou longas discussões e estudos?
O julgamento do vulgo não é bastante metafísico para penetrar essas profundidades; aliás, toda uma existência ocupada em ganhar o pão de cada dia não deixaria tempo suficiente para tal mister.
Os povos vizinhos invejam o governo desta ilha afortunada; sentem-se fortemente atraídos pela sabedoria de suas instituições e pelas virtudes de seus habitantes. As nações livres e que se governam por si mesmas (muitas dentre elas foram outrora libertadas da tirania pelos utopianos) vão pedir-lhe magistrados para um ou cinco anos. Na expiração do prazo de suas funções, esses magistrados de empréstimo são reconduzidos ao seu país com as honras que merecem, enquanto outros partem a fim de substituí-los. É certo que os povos que assim agem resolvem favoravelmente seus interesses. A salvação ou a perda de um império dependem dos costumes dos que o administram. Ora, nossos insulares oferecem à escolha dos que os requerem para chefes as melhores garantias de probidade política.
O utopiano não se deixará corromper pelos atrativos da riqueza, por mais brilhante que ela possa ser. Tampouco o utopiano deixar-se-ia levar pelo amor ou pelo ódio, pois é completamente desconhecido de seus administradores. Infeliz do país onde a avareza e as afeições privadas sentam-se no banco do magistrado. Adeus justiça, a mola mais firme dos Estados!
A República utopiana reconhece como aliados os povos que lhe vêm pedir chefes, e por amigos os que lhe devem um benefício. Quanto aos tratados que as outras nações assinam tão frequentemente para rompê-los e renová-los em seguida, ela nunca os assina. Para que servem os tratados? Interrogam os utopianos. Não uniu a natureza do homem ao homem por laços bastante indissolúveis? Aquele que despreza esta aliança íntima e sagrada terá escrúpulo em violar um protocolo? Consolida-os nesta opinião o fato de que nas terras desse novo mundo é raro que as convenções entre príncipes sejam observadas de boa fé. Os utopianos têm por princípio que não se deve ter inimigo senão aquele que se torna culpado de injustiça ou violência.


Thomas Morus (1478-1535) foi grande chanceler da Inglaterra e nasceu em Londres, onde foi decapitado. Fez seus estudos em Oxford, onde foi amigo de Erasmo. Quando Henrique VIII apostatou da religião católica, o grande chanceler manteve-se leal à sua fé, descontentando o rei. No ano seguinte, ofendeu mortalmente Ana Bolena, ao recusar-se a assistir seu casamento ilícito com o rei e a prestar fidelidade a seus descendentes. Foi condenado à prisão perpétua e ao confisco de todos os seus bens e, finalmente, à morte. A "Utopia", sua obra mais divulgada, e que lhe deu renome universal, foi editada em Basiléia por seu amigo Erasmo. O livro é uma sátira às instituições da época, e permanece na história do socialismo como a primeira tentativa teórica da edificação de uma sociedade fundada na comunidade de bens. É deste livro, sonho generoso de renovação da humanidade, o texto que hoje publicamos.

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