MORUS E A UTOPIA

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 5 de novembro de 1977.

Há uma arte comum a todos os utopianos, homens e mulheres, e da qual ninguém tem o direito de isentar-se —a agricultura. As crianças aprendem a teoria nas escolas e a prática nos campos vizinhos. Lá assistem ao trabalho e trabalham também, o exercício desenvolve suas forças. Além da agricultura que, repito-o, é um dever imposto a todos, ensina-se a cada utopiano um ofício especial. Uns tecem lã ou linho, outros são pedreiros ou oleiros, outros trabalham madeiras ou metais. As roupas têm a mesma forma, invariável, e apenas distingue o homem da mulher, o solteiro do casado. Estas vestes devem reunir elegância à comodidade, facilitando os movimentos do corpo, defendendo contra calores e frios; cada família confecciona seus próprios trajes. No trabalho usa-se couro, que pode durar sete anos. O linho é muito difundido porque exige menos trabalho. Um trajo deve durar dois anos. Enquanto que alhures cada pessoa carece de quatro ou cinco roupas de diferentes cores e formas, os utopianos, por terem simplificado seus padrões, gastam menos e, nem por isto, sentem-se menos cômoda e elegantemente vestidos.
Todos os homens e mulheres, sem exceção, são obrigados a aprender um dos ofícios mencionados acima. As mulheres, mais fracas, trabalham apenas a lã e o linho, os homens são encarregados de coisas mais penosas.
Os utopianos dividem seu dia da seguinte maneira: seis horas são empregadas em trabalhos materiais (três horas de trabalhos antes do meio-dia, três horas depois do meio-dia). Para almoço e repouso são necessárias duas horas. Deitam-se às nove e reservam nove horas para o sono. Longe de abusar das horas de lazer, abandonando-se à ociosidade e à preguiça, descansam, variando de ocupação. Desta forma escapam da monotonia, enriquecem suas vidas e servem à ilha.
Todas as manhãs, antes do sol se levantar, os cursos públicos são abertos. Somente os cidadãos especialmente destinados às letras são obrigados a seguir estes cursos, mas todos os utopianos têm o direito de assisti-los, mulheres ou homens, quaisquer que sejam suas profissões. O povo ocorre em massa à educação, cada um se apega ao ramo de ensino que tem mais relação com sua indústria e seu gosto.
Dir-se-á talvez: seis horas de trabalho por dia não são suficientes paras as necessidades do consumo público. Mas não é o caso. As seis horas de trabalho produzem abundantemente para todos as necessidades e comodidades. Compreendereis isto se refletirdes no grande número de pessoas ociosas existentes nas outras nações. São em geral, as mulheres e a maioria dos homens onde estas trabalham em seu lugar. Em seguida, temos a multidão de sacerdotes. Somai ainda todo os ricos e proprietários chamados de "nobres" e "senhores", acrescentai os malandros de libré e achareis em resumo que o número de todas as necessidades é bem menor do que imaginais.
Considerai também como são poucos aqueles empregados em coisas realmente necessárias. Porque neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o Deus e a medida universal de valor, grande é o número de atividades frívolas e vãs que se exercem unicamente a serviço do luxo e da ostentação. O trabalho material é de curta duração, mesmo assim produz em abundância. Quando há acúmulo de produtos, os trabalhos diários são suspensos e a população é transportada em massa para reparar estradas estragadas.
O fim das instituições oficiais da utopia é prover, antes de tudo, as necessidades do consumo público e individual e deixar a cada um o maior tempo possível para libertar-se da servidão do corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo suas faculdades intelectuais pelo estudo das ciências e letras. É neste desenvolvimento completo que os utopianos vêem a verdadeira felicidade. Certas disposições mantêm o equilíbrio da população impedindo-a de tornar-se muito rara em certos pontos, muito densa em outros.
Cada cidade deve ser constituída de seis mil famílias. Quando há numa cidade mais gente do que deve conter, o excedente vai preencher os claros das cidades menos povoadas.
As cidade dividem-se em quarteirões, no centro dos quais encontram-se os mercados das coisas necessárias à vida. Cada pai de família vai procurar no mercado de que tem necessidade para si e para os seus. Tira o que precisa sem que seja exigido dele nem dinheiro, nem algo em troca. Jamais se recusa alguma coisa aos pais de família. Sendo extrema a abundância, não existe o temor de que alguém tire além da sua necessidade. De fato, aquele que tem a certeza de que nada faltará, não procurará possuir mais do que é preciso. O que torna, em geral, os animais cúpidos e rapaces é o temor de privações no futuro. No homem, em particular, existe uma outra causa da avareza — o orgulho que o excita a ultrapassar em opulência aos seus iguais e a deslumbrá-los pelo aparato de um luxo supérfluo. Mas as instituições utopianas tornam este vício impossível. É permitido ir ao mercado à procura de viveres para o consumo particular, mas só depois que as mesas públicas estiverem completamente providas. Se cada qual é livre de comer em sua casa, ninguém encontra prazer em fazê-lo. Seria loucura dar-se ao trabalho de preparar um jantar ruim quando se tem um bem melhor, a alguns passos.
O almoço é rápido, a ceia demorada. Porque ao almoço segue-se o trabalho, enquanto que depois da ceia vem o repouso. A ceia não se realiza sem música e sem uma sobremesa copiosa, com perfumes e essências delicadas. Nada é poupado para o bem-estar e gozo dos convivas. Poder-se-á acusar os utopianos de tendência excessiva ao prazer? Eles têm por princípio que a volúpia que não engendra nenhum mal é perfeitamente legítima.


Thomas Morus (More) (1478-1535), lorde inglês mais tarde canonizado. Foi advogado e estadista, chegando a ser chanceler. Morreu martirizado por perseguições religiosas. "Utopia", a sua mais famosa obra, foi influenciada pelo espírito renascentista inglês: ecletismo, procura da simplicidade, ênfase em ética, pacifismo e concórdia, retornos às fontes gregas, desejo de reforma. A sua visão de um Estado ideal, por ser mais moderna, é mais detalhada do que a de Platão, oferecendo caminhos mais tarde desenvolvidos pelos adeptos do socialismo utópico não-marxista dos séculos 19 e 20. O extrato acima contém apenas os aspectos práticos da existência na Ilha da Utopia. Foi utilizada versão brasileira com tradução de Luís de Andrade. (E.Ouro).

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