MONTESQUIEU E OS CHINESES

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 23 de outubro de 1977

Os costumes e as maneiras são práticas que as leis não estabeleceram, ou não puderam, ou não quiseram estabelecer. Há esta diferença entre as leis e os costumes: as leis regem mais as ações do cidadão, os costumes regem mais as ações do homem. Há esta diferença entre os costumes e as maneiras: as primeiras concernem mais à conduta interior e, as outras, à exterior.
Não devemos nos admirar se os legisladores da Lacedemônia e os da China confundiram as leis, os costumes representam as leis, e as maneiras representam os costumes.
Os legisladores da China tinham como objetivo principal fazer com que o povo vivesse tranquilo. Queriam que os homens muito se respeitassem, que cada qual sentisse a todo instante que muito devia aos demais e que não existia cidadão que não dependesse, de algum modo, de outro. Eles deram às regras da civilidade o maior alcance.
A civilidade vale mais, a esse respeito, do que a polidez. Esta, favorece os vícios dos outros e aquela, impede-nos de revelar os nossos. É uma barreira que os homens colocam entre si para impedir a corrupção.
Licurgo, cujas instituições eram severas, não teve como objetivo a civilidade quando formou as maneiras: tinha em mira este espírito belicoso que pretendia incutir em seu povo. Pessoas que estão sempre corrigindo ou que são sempre corrigidas, que instruem sempre e que são sempre instruídas - ao mesmo tempo simples e rudes - praticariam mais entre si as virtudes, do que teriam considerações.
Os legisladores da China fizeram mais: confundiram a religião, as leis, os costumes e as maneiras. Tudo isto foi a moral, tudo isto foi a virtude. Os preceitos resultantes destes quatro pontos foram chamados de ritos. Foi na estrita observância desses ritos que o governo chinês triunfou. Passaram toda a vida apreendendo-os e toda sua vida praticando-os. Os letrados ensinaram-no, os magistrado pregaram-no. E, como envolviam todas as pequenas ações da vida, logo que se encontrou o meio de fazer com que fossem estritamente observados, a China foi bem governada.
Mas aqueles príncipes que, em lugar de governar pelo ritos, governaram pela força dos suplícios, quiseram que os suplícios fizessem o que não está em seu poder, ou seja, impor os costumes. Suplícios efetivamente eliminarão da sociedade o cidadão que, tendo perdido os bons costumes, viola as leis. Mas se todos perderem os bons costumes, com suplício poderemos restabelecê-los? Suplícios, de fato, suprimirão várias consequências do mal geral, mas não corrigirão esse mal. Desta maneira, quando se abandonaram os princípios do governo chinês - quando a moral desapareceu - o estado mergulhou na anarquia e vieram as revoluções.
O que há de singular é que os chineses, cuja vida é inteiramente dirigida pelos ritos, sejam um povo muito velhaco. Isso se manifesta sobretudo no comércio que nunca lhes pôde inspirar a boa-fé que lhe é própria. (Quem compra deve levar sempre sua própria balança, já que cada negociante tem três delas: uma pesada, para comprar; outra leve, para vender; uma terceira, exata, para os prevenidos).
Essa contradição do caráter chinês pode ser explicada da seguinte forma: os legisladores da China tiveram dois objetivos: pretenderam que o povo fosse submisso e o pacífico e que, ao mesmo tempo, fosse diligente e trabalhador. Foi a necessidade e talvez o clima que deu aos chineses uma avidez inconcebível pelo ganho e as leis não pensaram em detê-lo. Tudo havia sido proibido quando se tratava de violência, mas tudo ficou permitido quando era obtido pelo artifício. Não comparemos, portanto, a moral da Europa com a dos chineses. Todos na China tiveram que estar atentos ao que lhes era útil. Se o tratante vela por seus interesses, o simplório deve cuidar dos seus. Na Lacedemônia era permitido roubar; na China era permitido ludibriar.
Dissemos antes que as leis eram instituições particulares e exatas do legislador e os costumes e maneiras, instituições da nação em geral. Disso decorre que quando se quer modificar costumes não será com decretos que isto será feito, seria tirânico. É melhor modificá-los através de outros costumes e outras maneiras.
Quando um príncipe pretende introduzir grandes modificações em sua nação cumpre que reforme por leis o que está estabelecido por leis e que modifique por novas maneiras o que está estabelecido por maneiras.


Charles-Louis de Secondat, Barão de La Brède e de Montesquieu, nasceu num castelo perto de Bordéus em 1689. Morreu no mesmo castelo em 1755. Autor das "Cartas Persas". Viajou muito e muito observou nas suas viagens. De uma estada de dois anos na Inglaterra, e impressionado pelo liberalismo, resultou "O Espírito das Leis". Sobre ele Voltaire disse: "Montesquieu, em relação aos sábios, esteve sempre errado, porque ele não era um sábio: mas sempre teve razão contra os fanáticos e os tiranos". O texto acima foi extraído e composto do "Espírito das Leis" (Livro XIX, capítulos 14,16,17,19 e 20), utilizando-se a versão "Os Pensadores". Volume 21 (Abril Cultural). As referências ao povo chinês que constantemente aparecem no "Espírito das Leis" são um recurso anedótico e ilustrativo (na ocasião a China era um outro mundo), não podendo ser tomadas como julgamento do seu caráter nacional.


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