MONTAIGNE E O ARREPENDIMENTO

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 15 de dezembro de 1977

Os outros educam o homem, eu o descrevo; e represento um exemplar bastante malformado, o qual, se me coubesse refazê-lo, o formaria muito diferente do que é. Mas agora já está feito. Ora, os traços de minha pintura não se contradizem, apesar de mudarem e se diferenciarem. O mundo oscila sem cessar, tudo oscila nele em virtude das oscilações exteriores e interiores. A própria constância não passa de um oscilar mais brando. Não pinto o ser, pinto-lhe a passagem. Minha história se acomoda à hora que passa, posso mudá-la em seu destino e em suas intenções. Se minha alma pudesse firmar-se, eu não faria ensaios, tomaria decisões. Ela porém está sempre aprendendo e experimentando.
Propugno uma vida simples e sem brilho. Tanto se ligam à filosofia e à moral as existências discretas quanto as vidas do mais rico estofo. Todo homem traz em si a forma inteira da condição humana.
O vício deixa como que uma úlcera na carne, um arrependimento na alma, a qual assim se arranha e se ensanguenta sozinha. A razão apaga as demais tristezas e dores mas gera a do arrependimento, mas grave, porque nasce por dentro.
Quando analiso agora na velhice os meus excessos na mocidade - é o mais que posso fazer. Não é empáfia. Em circunstâncias idênticas, agiria do mesmo modo. Não tenho feridas, apenas estas manchas universais. Não admito arrependimento superficial, remorso mais ou menos cerimonioso. Para que lhe dê tal nome, é preciso antes que me apalpe de todos os lados e o sinta queimando-me as entranhas e mortificando-me perante Deus.
Odeio este arrependimento acidental, inerente à idade. Quem outrora dizia agradecer ao anos o terem libertado da volúpia, professava uma opinião diferente da minha -jamais serei grato à impotência e ostracismo pelo bem que me outorguem. Nossos apetites fazem-se raros na velhice, profunda saciedade nos invade após a ação-nisso, porém, nada descubro de consciente, pois a tristeza e a debilidade nos emprestam uma virtude covarde e catarrosa. Não devemos abastardar nosso raciocínio confrontados nas alterações naturais.
A mocidade, o prazer e o poder não nos levaram a ignorar outrora o semelhante do vício na volúpia; o fastio e a derrota que os anos me trazem agora não devem, tampouco, levar-me a desconhecer a volúpia do vício. Diante de nova concupiscência, creio, teria menos força do que antes para sustentá-la. Por conseguinte, se há agora convalescença doentia. Renuncio pois a essas reformulações casuais, tão a gosto hoje em dia.
É preciso que nossa consciência se corrija por si só, em virtude do robustecimento de uma razão e não pelo desfalecimento do nosso poder. Deve-se amar a temperança por si mesma. Mas a temperança provocada por cólicas ou circunstâncias advindas das vontades dos outros não é temperança.
Não se pode alguém vangloriar-se de desprezar e combater a volúpia, se não a conhece, se lhe ignora as graças, os imperativos e a sedutora beleza. Chamamos sabedoria as falhas de nosso temperamento mas na realidade não abandonamos os vícios, apenas os trocamos e, a meu ver, por piores.
Amo a sabedoria jovial e discreta e aborreço a aspereza de costumes e da austeridade. Considero suspeita toda catadura rebarbativa.
A virtude é a qualidade amável e jovial. Odeio o espírito resmungão e tristonho que despreza a vida e se apega às desgraças.
O arrependimento nada mais é do que a renegação da nossa vontade, uma oposição da nossa fantasia. Leva alguns a renegar a sua virtude passada e sua continência anterior. Qualidades originais não se extirpam. Cobrem-se, ocultam-se. Observe-se como se comporta nossa experiência: não há quem, analisando-se, não descubra em si uma forma própria, uma forma dominante que luta contra o artifício e a educação e contra a tempestade das paixões que lhe são contrárias.
Pecados de compleição, profissão ou vocação geralmente são praticados com a anuência da razão e da consciência. Difícil imaginar o arrependimento de seus autores. Não encontro qualidade mais fácil de dissimular do que a devoção, se a ela não se faz obedecer os costumes e a vida.


Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), ensaísta, estadista e filósofo cético francês. Apesar de a mãe ser judia, foi educado como católico mas sua posição crítica às idéias da época o coloca como um dos precursores do liberalismo. Foi autor de um só livro, "Ensaios", coletânea de pensamentos sistematicamente ampliados a cada edição. Nesse livro único, escrito em estrutura estabelecida, sem método, ao acaso das vivências e leituras, entrega-se Montaigne por inteiro, aos leitores e faz um painel universal da vida. Foi eleito duas vezes prefeito de Bordéus, experiência pública que enriqueceu sobremodo seu cabedal de conhecimentos humanos. Segundo Gide, a novidade que Montaigne trouxe ao mundo foi apenas o conhecimento de si mesmo mas de forma tão universal e profunda que todos nele se reconhecem. O mesmo Gide analisa o estilo de Montaigne: "O grande prazer que nos proporcionam os "Ensaios" de Montaigne provém do grande prazer que o autor experimentou ao escrevê-los". A posição humanista de Montaigne está expressa numa sentença: "Todos trazem o seu bem dentro de si". Desta forma, ele fugia à posição maniqueísta do bem e do mal distribuídos discriminadamente entre os homens. O texto abaixo foi extraído e resumido do Livro III, capítulos 2 e 5 dos "Ensaios", numa seleção feita por André Gide, em tradução brasileira de Sérgio Milliet (Livr. Martins Ed.).


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