MERTON E A HUMILDADE

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 21 de março de 1978

Um homem humilde não é perturbado pelo louvor. Visto que já não se preocupa consigo próprio e sabe donde vem o que nele existe de bom, não se furta ao louvor, porque este pertence a Deus a quem ama, e, ao recebê-lo dele, não guarda nada para si próprio. Antes, com alegria, o dá todo a Deus. "Fecit miht magna qui potens est" (aquele que é poderoso me fez grande - N.T.).
Um homem que não é humilde não pode receber, em graça, o louvor. Sabe o que deveria fazer dele, sabe que o louvor é devido a Deus e não à sua pessoa, mas transmite-o a Deus tão desastradamente, que se exalta a si próprio e sobre si chama a atenção pela sua própria falta de tato.
Aquele que ainda não aprendeu a humildade é que fica perturbado e contrariado com o louvor. Pode mesmo perder a paciência quando o louvam: irrita-o o sentimento da própria indignidade. E, mesmo que não se manifeste de qualquer maneira, sempre as coisas que dele disseram hão de persegui-lo e assediar-lhe o espírito, atormentando-o onde quer que vá.
No extremo oposto, encontra-se o homem que não possui a menor humildade e que devora o louvor, se algum recebe, à maneira de um cão que devora um pedaço de carne. Mas este não constitui qualquer problema: é de tal forma fácil de reconhecer, que, desde Aristófanes, tem o seu papel em todas as farsas.
O homem humilde recebe o louvor como um vidro limpo recebe a luz do sol. Quanto mais real e mais intensa é a luz, menos se distingue o vidro.
Para aqueles que vivem em mosteiros, há o perigo de fazerem tão laboriosos esforços para ser humildes, daquela humildade aprendida nos livros, que a verdadeira humildade se lhes torne impossível. Como podeis ser humildes, se estais sempre preocupados com vós próprios?
A verdadeira humildade exclui a consciência dos nossos próprios recursos, mas a falsa humildade intensifica a vigilância de nós próprios a tal ponto que ficamos paralisados e já não podemos fazer qualquer movimento ou praticar qualquer ação sem pôr a trabalhar todo um complexo mecanismo de desculpas e fórmulas de auto-acusação.
Se fordes verdadeiramente humildes, não vos inquietareis absolutamente nada a vosso respeito. Por que o fareis? Só vos importa Deus e a sua vontade, e a ordem subjetiva das coisas e dos valores tais como são e não como vosso egoísmo quer que elas sejam. Consequentemente, já não teríeis ilusões a defender.
Teríeis liberdade de movimentos. Não teríeis necessidade de vos embaraçar com uma montanha de desculpas que realmente são talhadas para vos defender da acusação de orgulho -como se a vossa humildade dependesse do que os outros pensam de vós.
Um homem humilde pode realizar grandes coisas com uma rara perfeição, porque já não se preocupa com contingências tais como seus interesses e sua reputação, e, portanto, já não tem necessidade de desperdiçar esforços e defendê-las...
O desespero é o supremo grau do amor próprio. Chega-se a ele, quando um homem, deliberadamente, volta as costas a todo o socorro alheio, a fim de saborear a mórbida volúpia de se saber perdido. Em todo homem se oculta qualquer raiz de desespero, porque em todo homem há um orgulho que está latente e faz brotar ervas ruins e exuberantes flores de piedade por nós próprios, logo que se esgotam nossos recursos. Mas como os nossos recursos inevitavelmente se esgotam, todos estamos, mais ou menos, sujeitos ao desânimo e ao desespero.
O desespero é o desenvolvimento máximo de um orgulho tão grande, tão obstinado, que prefere a absoluta miséria da danação a aceitar a felicidade das mãos de Deus e implicitamente reconhecer que ele está acima de nós e que não somos capazes, por nós próprios, de cumprir nossos destinos. Mas um homem que é verdadeiramente humilde não pode desesperar, porque no homem humilde já não existe nada que se assemelhe à piedade por si próprio. Se formos incapazes da humildade, seremos incapazes de ter alegria, porque só a humildade pode destruir o egocentrismo que torna impossível a alegria. Senão houvesse humildade no mundo, há muito que todos nós nos teríamos suicidado.
Na verdade, um homem humilde não teme o fracasso. Na verdade, não teme nada, nem mesmo a si próprio, uma vez que a perfeita humildade implica perfeita confiança no poder de Deus, perante quem nenhum outro poder tem qualquer significação e perante quem nada pode ser um obstáculo.
A humildade é o mais seguro sinal de força.


Thomas Merton (1915 - 1963), a quem os círculos da "Inteligentzia" católica consideram "o maior monge do Ocidente", tornou-se um dos mestres mais reputados do pensamento místico de nossos dias. Sua presença na vida religiosa dos Estados Unidos alcançou projeções mundiais. Morto tragicamente em 1963, eletrocutado quando colocava uma lâmpada em seu convento. Era sacerdote, havendo ingressado na severa Ordem dos Trapistas, cujos monges fazem voto de silêncio perpétuo. Viveu e morreu na abadia de Gethsemani, no Kentucky, onde foi, inclusive, mestre de noviços, tendo em seu noviciado como discípulo o poeta Ernesto Cardenal. O texto que hoje publicamos é de seu livro "Sementes da Contemplação".


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