MARTIN BUBER E O SOCIALISMO UTÓPICO

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 18 de janeiro de 1978.


Já a primeira vista se nos torna patente o que possuem em comum as utopias que ficam na história da humanidade: elas são quadros ou imagens e, indubitavelmente, quadro de algo que não existe, que é apenas imaginário. Geralmente, costuma-se considerá-las quadros-fantasia, mas isso não basta para defini-las. É um lado por outro, impulsionado por ocorrências alternantes, mas que se centraliza com firmeza tectônica em um elemento primordial, é um desejo. A imagem utópica é um quadro do que "deve ser", e o que seu autor desejaria que viesse a ser.
Costuma-se dizer também que as utopias são imagens de desejos, mas isso, tampouco, esgota o assunto. Ao falar em imagem de desejo, pensamos em algo que sobe das profundezas do inconsciente em forma de sonho, sonho da vigília ou de "veleidade", que ataca de surpresa a alma desprevenida e que, talvez mais tarde, seja assim chamado pela própria alma e ampliado por ela.
Através da história do espírito, o desejo utópico gerador de imagens, embora esteja, como tudo o que cria imagens, enraizado nas profundezas, nada tem a ver com o instinto ou com a auto-satisfação. Ele se acha ligado a algo de superpessoal, que se comunica com a alma, mas que não se acha condicionado por ela. O que aqui predomina é o anseio pelo que é justo, anseio que se experimenta na visão religiosa ou na filosófica como revelação ou idéia e que, por sua essência, não pode se realizar no indivíduo mas somente na comunidade humana.
A visão daquilo que deve ser, muito embora às vezes pareça ser independente da vontade pessoal, não pode ser separada da atitude crítica em face da atual maneira de ser do mundo humano. O sofrimento que nos causa um sistema absurdo prepara a alma para a visão e o que esta vê reforça e aprofunda a compreensão da inexatidão do erro. O desejo de que a visão se realize dá forma à imagem.
Na revelação, a visão do que é justo se consuma na imagem de um tempo perfeito: como escatologia messiânica. Na idéia, a visão do justo se consuma na imagem de um espaço perfeito: como utopia. Por sua essência, a primeira transcende o aspecto social, ocupando-se do homem como criação, e até mesmo como produto cósmico; a segunda permanece circunscrita ao âmbito da sociedade, mesmo que, por vezes, inclua em sua imagem uma transformação interna do homem. Escatologia significa consumação da criação; utopia, desenvolvimento das possibilidades latentes na comunidade humana, de se concretizar uma ordem "justa".
Há ainda uma outra diferença mais importante. Para a escatologia - embora ela em sua forma elementar, profética, prometa ao homem uma participação ativa na vida da redenção — o ato decisivo vem de cima; para a utopia, tudo se acha submetido à vontade consciente do homem, podendo-se mesmo considerá-la imagem da sociedade esboçada, como se não existissem outros fatos além dessa vontade. Nenhuma das duas, porém, paira pelas nuvens.
Assim como pretendem despertar ou intensificar em seu ouvinte ou leitor a relação crítica com o presente, querem também lhe mostrar a perfeição, imbuída da força luminosa do absoluto; mas para atingir esta perfeição é preciso trilhar um caminho ativo no presente. E aquilo que, como conceito, poderia parecer impossível, suscita, como imagem, todo o poder da fé, determinando o propósito e o plano. Isso se torna possível pelo fato de a imagem estar associada a forças subjacentes nas profundezas da realidade. A escatologia, quando profética, e a utopia, quando filosófica, possuem um caráter realista.
Victor Hugo chamou a utopia de "a verdade matutina". O anseio espiritual chamado socialismo utópico, que parece condenado a permanecer divorciado de sua época, prepara a futura estrutura da sociedade: "prepara", já que não existe um curso da história necessário em si, independente da decisão do homem. Essa tendência, evidentemente, terá que conservar as formas comunitárias ainda existentes e animá-las com um novo espírito. Sobre o portal do centralismo marxista acha-se gravada, por tempo indeterminado, a inscrição com que Engels definiu, certa ocasião, a tirania do mecanismo automático de uma grande fábrica: "Lasciate ogni autonomia voi ch'entrate" ("Renunciai a toda a autonomia, vós que entrais"). O socialismo "utópico" luta pelo máximo de autonomia comunitária possível, dentro de uma reestruturação da sociedade.


Martin Buber (1878 — 1965), pensador judeu religioso-existencialista de origem polonesa-alemã. Forneceu ao sionismo sua mais importante contribuição filosófica. Apesar de ter migrado para a então Palestina nos anos 20. Buder exerceu enorme influência no pensamento alemão entre as duas guerras, notadamente em Walter Benjamin. Nos últimos anos de sua vida, marginalizou-se dentro de Israel, por não concordar com as posições oficiais no tocante aos árabes do país. (Na ocasião, ainda não eram chamados de palestinos). Religioso e místico, procurou sempre para o sionismo uma fórmula política que conservasse os valores morais e éticos que mantiveram o povo judeu unido ao longo dos séculos. Desta forma, compreendia o sonho sionista intimamente ligado com a construção de uma sociedade melhor. Era um "socialista utópico" sem considerar esta posição como irrealista e fantasiosa. O trecho que abaixo publicamos foi extraído do capítulo introdutório de "Socialismo Utópico" (Ed. perspectiva, SP).

Para imprimir este texto clique o botão direito do seu mouse.
 

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.