MARSHALL E O ESTADO DE DIREITO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 30 de março de
1978
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Seja-me
permitido comentar as palavras do honrado sr. Henry. Ele falou
sobre a necessidade de se dar atenção a certas prescrições
- a certos princípios fundamentais, sem os quais não
pode viver um povo livre. Concordo com ele em que esses princípios
devem ser observados. Eles são necessários em qualquer
governos e, mais necessários ainda numa democracia. Mais
do que isto: são essenciais.
Quais são os princípios inerentes a uma democracia?
Uma estrita observância da justiça e da fidelidade
à coisa pública e uma firme adesão à
virtude. Estes, senhor, são os princípios de um
bom governo. Nenhum infortúnio, nenhuma desgraça
nos deve afastar da estrita observância da justiça
e da fidelidade à coisa pública. Queiram os céus
que estes princípios tenham sido observados durante o presente
governo. Se este fosse o caso, não estariam os amigos da
liberdade tão desejosos de sua plena participação
neste momento.
Será que podemos nos vangloriar de haver fundado nosso
governo sobre esses princípios? Podemos pretender estar
no gozo da liberdade e da segurança política, quando
somos informados que uma pessoa foi eliminada de sua própria
existência, por um ato da Assembléia, sem um julgamento
pelo júri, sem instrução, sem um confronto
entre acusadores e testemunhas, sem a proteção da
lei do país?
Onde está a nossa segurança, quando nos dizem que
um ato desses era justificável pelo simples fato de que
a vítima não era propriamente um Sócrates?
Onde estão os princípios da respeitabilidade humana?
Será que eles não valem nada? Será que é
princípio honrado condenar um homem sem o amparo das normas
da lei? Será que há um tipo de condenação
que possa ser justificado sob a alegação de que
o cidadão não foi punido "secundum artem"
por ser um mau elemento? Será que o governo não
deve estar obrigatoriamente preparado para proteger a virtude?
O honrado deputado, depois de tentar justificar esse ato tirânico
a que estou aludindo, passou a traçar um quadro sombrio
dos perigos a que esta nação estaria exposta. Ele
nos disse que o principal perigo seria o de um governo que pusesse
em risco a segurança do Estado. Quanto a mim, entendo que
só se deve agir dentro da lei, qualquer que seja a causa
em julgamento. E devo responder a algumas observações
que aqui se fizeram, com o propósito de tumultuar a questão...
Dizem que devemos ter um governo forte, enérgico e poderoso.
Mas nós lutamos é por uma democracia submetida à
lei. Insinua-se que o poder do governo goza de certa margem de
arbítrio, ampliada pela convenção, e que
nós podemos levar esse arbítrio até os limites
de nossos desejos. O certo, porém, é que a convenção,
na realidade, não estabeleceu nenhum poder ao arbítrio.
Foi proposta à nossa consideração uma forma
de governo que julgamos razoável. Não fomos obrigados
a adotá-la, a não ser dentro de nossas próprias
decisões. Todas as pessoas, dentro deste corpo de decisões,
eram livres de adotar a aprovar o que melhor lhes parecia para
o bem comum do país.
Vários senhores representantes já demonstraram que
a convenção não se excedeu em seus poderes.
Parece, não há dúvida, que o Congresso é
que tem o poder de fazer as leis. Até de fazer as leis
ruins. O Senado, como esclarece o próprio presidente, pode
até fazer tratados que nos sejam desvantajosos.
Se os legisladores não forem bons, a Constituição
não será boa. Mas eu pergunto a cada um dos dignos
representantes se, ao longo do tempo, pode ou não o povo
emendar as leis e os tratados, de uma maneira bem melhor do que
o faria um legislador solitário.
Isto é o que deve ser levado em conta por todos os cidadãos.
Ninguém pode exercer sozinho, por conta própria
e pessoalmente, os poderes de governar o país e de legislar
para toda a nação. É preciso confiar nos
que agem e falam por toda a sociedade.
Do contrário, se estará cometendo o abuso de usurpar
direitos que não pertencem a uma única pessoa. Pior
do que isto: se estará criando uma possibilidade de dar
permanente oportunidade ao abuso de autoridade, e até de
institucionalizar esse abuso.
Na medida em que não se pode confundir o exercício
da vida pública com os interesses da vida privada, também
não se pode recusar a legitimidade dos representantes do
povo para estabelecer e aplicar a lei. Somente dentro dessas normas
se pode ter um governo decente, um governo que se constitua num
Estado de Direito, uma democracia, capaz de exercer o poder para
o bem. Do contrário, o poder será exercido para
o mal.
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Marshall
- John Marshall - (1755-1835) representa o momento mais alto
da consciência jurídica dos Estados Unidos. Foi presidente
da Suprema Corte por cerca de trinta e cinco anos, o que bem define
o respeito do país por sua sabedoria de magistrado e mestre
do Direito. Tomou parte na Guerra da Independência, em que
alcançou o posto de capitão. Foi membro da convenção
da Virgínia, que ratificou a Constituição Federal.
Publicou um biografia de Washington. Mas sua grande obra, editada
depois de sua morte, são os "Comentários à
Constituição", monumento do pensamento jurídico
norte-americano. O texto que hoje publicamos é de seu famoso
discurso pronunciado em 1788, na Convenção da Virgínia,
recomendando a ratificação imediata da Constituição
dos Estados Unidos.
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