MARITAIN E O DIREITO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, terça-feira 21 de fevereiro de
1978
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"Tenho
o direito de fazer tal coisa" -significa apenas que, assim
agindo, não farei nada de mau ou de proibido pela lei.
Mas a idéia que agora examinaremos é diferente;
concerne aos direitos que alguém possui e pode reivindicar.
É a tese que aparece em expressões tais como: -
"Tenho direito a tal coisa, à vida, ao trabalho, à
liberdade", "os direitos do homem". Esta idéia
considera-la-emos não do ponto de vista jurídico,
mas do ponto de vista moral.
O que está no âmago de um tal conceito é a
noção de debitum - aquilo que me é devido
- o meu devido; estranha noção e noção
primeira, como a do dever e da obrigação, noção
fundamental na ordem da moralidade, como a noção
de unidades ou de número na ordem matemática.
Também aqui, a melhor via filosófica é começar
pela perspectiva metafísica, a fim de daí passar
à perspectiva especificamente moral.
Já no campo ontológico, há um debitum, algo
de devido, algo que "deveria ser". Penso no bonum debitum
cuja privação constitui o mal ontológico.
Trata-se aí de um certo bem que é devido a uma coisa,
requerido pela natureza desta como fazendo parte de sua plenitude
formal, ou em virtude de sua ordenação a um fim
dado. Coxear, gaguejar - a falta de um bem - de uma determinada
condição neuromuscular que é devida ao organismo,
tendo em vista aqueles fins da sua natureza que são mover-se
e falar. Neste sentido, a vida é um bem devido ao animal
(devido, no sentido de requerido de fato, ontologicamente requerido,
e não no sentido de requerido em justiça ou moralmente
requerido).
E, se agora passarmos à ordem ética, achar-nos-emos
em presença da mesma noção, mas com adição
de certos elementos essenciais: - antes de tudo, a noção
de que os outros homens são moralmente obrigados, ligados
em consciência a respeito do bem devido (não mais
apenas ontologicamente porém, moralmente) a tal ou qual
ser humano. Neste sentido, a vida ou a existência (que ele
recebeu da natureza) é um bem devido ao homem, moralmente
devido. Tenho direito a existir, a viver, e isto implica que os
outros homens são obrigados a respeito da minha existência,
obrigados em consciência a não me privarem dela.
Mais precisamente, podemos descobrir aqui três implicações
particulares: - 1 - O bem em questão me é devido
porque só um eu, um sí. O bem moralmente devido
é devido a um sí, e não apenas a uma natureza.
O animal não tem um "sí", um mundo interior
que se apresente como sua posse. O advento do sí, da pessoa,
faz passar à noção de "devido"
o limiar do domínio ético. O fato de ser dono de
si mesmo, a posse de sí por sí è um caráter
específico da pessoa. Para que disponha de seus próprios
fins e se revele capaz de autodeterminação, deve
meu eu ser um microcosmo que me pertence, do qual sou o dono (um
pobre dono, porque minha liberdade cavalga o determinismo de meus
instintos e de meu inconsciente - mas enfim dono). A despeito
de toda falência, isso está inscrito no âmago
da personalidade.
Em consequência, a noção de "devido"
acha-se transfigurada, já agora significa algo que é
devido ao meu eu, à minha pessoa como seu devido. O bem
devido é meu antes de eu o ter, e mesmo se nunca chego
a tê-lo. Pertence à esfera de minha posse de mim
por mim mesmo, a esfera daquilo que o sí possui; eu diria
que ele é pré-possuido por mim. Tenho direito à
liberdade, à vida. Não é esse apenas um bem
requerido por minha natureza para corresponder às conveniências
da sua forma ou às suas finalidade, senão que também
é um bem cuja exigência emana do meu eu, a fim de
ter realmente algo que, por sua essência, já é
o possuído por esse eu, pertence à esfera de seu
próprio universo e do seu domínio sobre sí
mesmo, ou da sua auto determinação, da sua autonomia.
Temos, assim, um primeiro esboço da definição
do direito: uma exigência que emana de um eu a respeito
de algo como sendo não somente um "bem devido"
(exigido pelas perfeições formais ou pelas finalidade
de um natureza), mas como sendo o seu devido (incondicionalmente
requerido como pré-possuido por ele, quero dizer, como
uma parte já pertencente, por sua própria natureza,
àquilo que o eu possui); haverá que completar esta
definição. Temos aí somente a primeira parte
de definição que eu quisera porpor.
Notemos, entre parenteses, que, se os animais tivessem um sí,
embora sem deixarem de ser animais - o que é contraditório
- então teriam direitos, por exemplo o direito a não
serem mortos sem necessidade. A condição pressuposta
pelo que acabamos de dizer é uma dignidade ou um valor
absoluto no sujeito de direito.
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Jacques
Maritain (1882-1973), pensador, considerado o mais importante
filósofo católico francês do século,
assim como o mais eminente interprete do pensamento de S. Tomás
de Aquino. Foi criado num ambiente protestante e racionalista. Mas
sob a influência de Henri Bergson, seu professor na Sorbonne.
Maritain e sua noiva, a judia Raissa Coumansoff, converteram-se
ao catolicismo. Casaram-se em 1904 e foram batizados em 1906 sob
a proteção de Léon Bloy. Maritain interessou-se
muito pela biologia mas o estudo sobre S. Tomás absorveu-o.
Foi embaixador da França no Vaticano e professor das mais
importantes universidades americana. A tônica metafísica
de Maritain é o "ser como ser". Mas muito do seu
tempo foi dedicado a desenhar uma filosofia política e social
verdadeiramente cristã. Enfatizou o ser humano como indivíduo
e pessoa, colocando-se assim frontalmente contra as doutrinas totalitárias
que muitas vezes se arrogam o título de defensores do cristianismo.
Sua posição é verdadeiramente humanista, sem
permitir que a devoção religiosa permeasse sua concepção
do Estado democrático e secular. Em matéria de arte,
outra de suas paixões, Maritain diz que quando esta se afasta
da aventura humana e existencial condena-se à esterilidade,
rejeitando todas as experiências formalistas e puristas. O
texto que hoje publicamos é de "Neuf Leçons sur
Les Notions Premièrs de la Philosophie Morale".
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