GABRIEL MARCEL E A TÉCNICA
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 22 de abril de 1978
|
|
Entende-se
por técnica, de um modo geral, toda disciplina que tende
a assegurar ao homem o domínio de determinado objeto. E
é bem evidente que toda técnica pode ser considerada
como uma manipulação, como um meio de projetar ou
de trabalhar uma certa matéria que, de resto, pode ser
puramente ideal, como por exemplo a técnica da história
ou da psicologia.
Há vários pontos a considerar a este respeito. Em
primeiro lugar, uma técnica se define com relação
a certa opções oferecidas pelo objeto. Mas, inversamente,
esse mesmo objeto não é o que é senão
pelas opções que podemos tomar me relação
a ele, e isto é certo mesmo no plano mais elementar, que
é o da percepção exterior.
Há, por isso mesmo, um paralelismo entre o progresso das
técnicas e o progresso na objetividade. Um objeto é
tanto mais objeto, se assim se pode dizer, na medida em que se
expõe mais às nossas opções, na medida
em que serve de material para técnicas mais numerosas e
mais aperfeiçoadas.
Em segundo lugar, uma técnica é perfectível
por sua própria essência. É qualquer coisa
suscetível de um tratamento cada vez mais preciso, cada
vez mais ajustado. Pode-se dizer também que, por outro
lado, não se pode falar de perfectibilidade ou de progresso
num sentido rigoroso e estrito, senão na ordem da técnica.
Há nisso, com efeito, uma medida possível e que
corresponde ao rendimento propriamente dito.
Finalmente, e este é talvez o ponto capital, nós
nos damos conta cada vez mais claramente, de que todo poder, no
sentido humano do termo, implica no tratamento prático
de uma técnica. O otimismo simples das massas repousa,
na hora atual, sobre esse conjunto de verificações.
É absolutamente certo que a existência da aviação
ou da T.S.F. parece à imensa maioria de nossos contemporâneos
como uma prova, um penhor palpável do progresso.
É importante notar a contrapartida ou o resgate dessas
conquistas. Sob este ponto de vista, o próprio mundo tende
a aparecer ora como um canteiro de obras, ora como um escravo
domado. Não se pode ler um artigo de jornal por ocasião
de alguma catástrofe qualquer, sem constatar que ela é
tratada como uma espécie de revanche da fera que imaginávamos
subjugada.
É neste ponto que descobrimos a conexão com o idealismo.
O homem, não já como espírito, mas como potência
técnica, aparece aqui como refúgio de ordem ou de
organização num mundo que não vale sua presença,
que não o mereceu, que, conforme todas as aparências,
o produziu por acaso - ou antes, do qual ele se desgarrou por
um ato violento de emancipação.
O mito de Prometeu alcança aqui a plenitude de seu sentido.
Muitos técnicos, sem dúvida, sacudirão os
ombros ao ver-se inseridos nesta estranha mitologia. De que recursos,
porém, poderão dispor, como técnicos e nada
mais do que técnicos? Não lhes restará, no
caso, senão encerrar-se em sua especialidade, e recusar-se,
senão de direito, ao menos de fato, a admitir o problema
da unidade do mundo ou da realidade.
Ver-se-ão surgir, sem dúvida, tentativas de síntese,
porque a necessidade de uma unidade é incoerente e constitui
mesmo, talvez, o próprio fundamento da inteligência.
Essas sínteses, porém, aparecerão sempre
como algo de relativamente gratuito em comparação
com as técnicas propriamente ditas. Dir-se-ia que elas
estão no ar, e esta expressão trivial traduz maravilhosamente
a ausência de tratamento que caracteriza a síntese
pura em oposição à técnica particular.
A partir daí, é como se uma sombra cada vez mais
espessa se estendesse sobre a realidade, onde já não
resta outra possibilidade senão a de destacar zonas, iluminadas
aqui e ali, mas sem comunicação umas com as outras.
E não é tudo. Não podemos ser enganados pelas
palavras. Esse poder técnico não pertence a alguém?
Não é alguém que exerce? Mas quem será
esse sujeito?
Neste passo, voltamos a chocar-nos com as mesmas constatações,
pois esse próprio sujeito aparecerá como objeto
de técnicas possíveis. Técnicas distintas,
múltiplas, entre as quais não há mais do
que conexões precariamente definíveis. Mas é
claro - e a experiência o demonstra amplamente - que até
mesmo essas técnicas, enquanto técnicas, se revelarão
tanto menos eficazes quanto mais se dirigem a um domínio
em que estes segmentos, estas especializações são
manifestamente impraticáveis. Esta é a razão
das decepções que ainda hoje nos oferecem as técnicas
psicológicas ou psiquiátricas.
Coloca-se, então, um problema angustiante e iniludível.
Uma vez que o sujeito está, por sua vez, entregue ás
técnicas, longe de ser uma fonte de clareza, um sinal de
luz, ele mesmo é que tem de ser iluminado pela reflexão.
Não se beneficiará senão de uma luz emprestada
pelos objetos. Pois, inevitavelmente, as técnicas que se
lhe pretenderão aplicar serão construídas
sobre o modelo das técnicas orientadas no sentido do mundo
exterior. Serão as mesmas técnicas, mas como que
aplicadas por transposição ou por uma espécie
de retorno.
|
|
Gabriel
Marcel (1889 - 1973) filósofo francês, nascido
em Paris, ensinou filosofia na Sorbonne. Escreveu sobre o teatro
e deixou inclusive peças de teatro da maior importância.
Mas a grandeza maior de seu pensamento está em sua obra filosófica,
arrancada, como a de Maritain e outros filósofos católicos,
da superação do positivismo, através de Bergson.
Representa, na França, a presença mais alta do existencialismo,
na corrente do pensamento de Kierkegaard e sobretudo de Heidegger,
sobre cuja obra se debruçou longamente, contido na linha
de uma permanente ortodoxia católica, numa espécie
de contraponto ao existencialismo marxista proposto por Sartre.
O texto que hoje publicamos é de seu "Être et
Avoir".
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|