MAQUIAVEL E OS MEIOS

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo 26 de fevereiro de 1978

Todo príncipe deve desejar ardentemente ser considerado piedoso, e não cruel. Mas é preciso que tome cuidado para não aplicar mal sua indulgência. César Bórgia foi considerado cruel. Pode ser: mas o que é certo é que foi sua crueldade que reformou toda a Romanha, que a uniu e reconduziu à paz e à felicidade.
Pensando bem, tudo isso serve para mostrar que ele foi muito mais piedoso do que o povo florentino em geral. Pois os florentinos, para não serem considerados impiedosos, aprovaram a destruição de Pistóia. O príncipe, portanto, não deve dar maior importância à reputação de crueldade que queiram criar em torno de seu nome, se essa reputação servir para manter a união e a disciplina de seu povo.
Para mostrar alguns exemplos, vale a pena dizer que o governo aparentemente cruel pode, no fundo, ser mais piedoso e compassivo do que outro que, por uma falsa compreensão da benevolência, deixa difundir-se a desordem, da qual se originam matanças e pilhagens. Essas, na verdade, prejudicam a todos, ao passo que as execuções ordenadas pelo príncipe prejudicam a uma só pessoa.
Entre todos os príncipes, é justamente ao príncipe que se torna impossível evitar a fama de cruel. E isto se explica: - é que os Estados modernos estão cheios de perigos. Não é por outra razão que Virgilio já dizia pela boca de Dido:

"Res dura, et regni novitas me talia cogunt
Mliri et late finescustode tueri"
("As duras circunstâncias e o caráter recente de meu reino me obrigam a essas severas providências, e a proteger com as armas minha fronteira em toda a sua extensão").

Não deve, porém, o príncipe tornar-se crédulo demais nem agir precipitadamente, nem desconfiar de sua própria força, mas proceder com sabedoria e humanidade, atento a que a confiança excessiva não o torne imprudente e a que o excesso de desconfiança não o torne insuportável.
Essas considerações levam a uma velha discussão: - a de saber se é melhor ser amado do que temido, ou vice-versa. É difícil ser as duas coisas ao mesmo tempo. No caso de não se conseguir reunir ambas as condições, então, o melhor mesmo é ser temido. Até porque, uma coisa pode-se dizer de todos os homens: - são ingratos, volúveis, dissimulados, inimigos do perigo e ávidos de ganho. Estão com uma pessoa, são capazes de oferecer-lhe até o próprio sangue, os bens, a vida e os filhos, enquanto recebem favores e enquanto não se precisa realmente deles. A medida, porém, em que se aproxima o momento de serem solicitados em sua ajuda, desaparecem.
Desse modo, o príncipe que se tinha fiado apenas em suas palavras, não tomando iniciativas para sua própria garantia, estará perdido. Pois as amizades compradas e não adquiridas pela pureza de um coração nobre e cavalheiresco não são amizades sinceras. Quando chegar a hora de necessidade, não poderemos contar com elas. Os homens, de um modo geral, têm muito mais facilidade em prejudicar uma pessoa que se faz amada, do que a uma que se faz temida. Pois o amor se mantém por vínculos de obrigação que são tranquilamente rompidos no momento em que surge a ocasião própria para sua confirmação. E isto, porque os homens são maus. Já o medo que se infunde é mantido pelo temor ao castigo, do qual nunca se deve abrir mão.
O príncipe deve agir, porém, de tal maneira que, caso não seja querido, pelo menos não atraia o ódio, uma vez que lhe é possível reunir ambas as coisas, isto é, ser temido e não ser odiado. E isto acontece sempre, caso ele se abstenha de roubar os bens, as riquezas e as mulheres de seus súditos. Mesmo quando seja forçado a derramar sangue, não deve fazê-lo sem justificativa conveniente e sem causa manifesta.
Deve, assim, o príncipe abster-se de abusar do bem alheio, pois os homens se esquecem mais depressa da morte de seu pai, do que da perda de seu patrimônio. Quando, porém, um príncipe conduz um exército e comanda um grande número de soldados, não deve preocupar-se absolutamente com a fama de crueldade, pois sem ela nunca um exército é unificado e preparado para qualquer operação.
Contam-se, dentre as admiráveis ações de Anibal, o seguinte: possuindo um imenso exército, composto de soldados de todas as nacionalidades, e conduzido para combater em país estrangeiro, nunca houve uma só dissensão entre os soldados, nem contra o príncipe. Isto pode ser creditado à sua cruel desumanidade, que, junto com suas imensas virtudes, sempre o tornou venerável e terrível para seus soldados. Sem ela, suas outras virtudes nunca teriam produzido esse efeito. Os que escreveram sobre suas façanhas, sem se aprofundarem muito, por um lado se maravilham com o que fez, e por outro o condenam, exatamente pelas razões que tornaram possíveis essas façanhas.

 


Nicolo Bernardo di Machiavelli (1469 -1527) nasceu e morreu em Florença. É também conhecido pelos nomes de "O Histórico" e "O Secretário Florencio". Foi secretário do chamado "governo dos Dez", quando se implantou a República em Florença. Dele disse Gioberti que "é o Galileu da política". Autor de vários livros, o mais famoso deles é "O Principe", dedicado a Giuliano di Médicis, e que tem como modelo o poderoso César Bórgia. Sua doutrina central é a de que os fins justificam os meios na defesa do poder. Lenin e Hitler, Stalin e Mussolini. De Gaulle e Churchill tiveram esse livro famoso na mesa de cabeceira. Até porque há várias maneiras de interpretar o suposto amoralismo de Maquiavel, certamente, no fundo, um idealista ou um romântico e até um santo da missão do Estado..


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