MAQUIAVEL E O DIREITO DE DEFESA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 12 de abril de 1978.
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Feito
o acordo e restabelecidas as antigas instituições
em Roma, citou Virgínio a Ápio diante do povo para
defender sua causa. Apresentou-se este, acompanhado de muitos
nobres. Pediu Virgínio que o prendesse, e Ápio,
aos gritos, apelou para o povo. Sustentava Virgínio que
ele não tinha direito à apelação,
porque ele mesmo é que havia abolido, quando governo, esse
tipo de recurso e não podia requerer a defesa do povo que
havia maltratado, em seus dias de poder. Ápio replicou
que o povo não lhe podia recusar o direito de apelação,
até porque disso se fizera contra seu governo a veemente
reivindicação que levara à derrubada do regime.
Apesar disso, foi preso e, antes de ser julgado, se suicidou.
Embora a malvada vida de Ápio merecesse a maior das penas,
foi, contudo, injusto, violar contra ele as garantias da lei,
especialmente de uma lei que acabara de restabelecer, que era
a do direito de apelação para o Tribunal do Povo.
Pois creio que o pior exemplo que uma República pode dar,
é fazer uma lei e não cumprí-la, sobretudo
se a inobservância parte de quem a promulgou.
Reformado em 1594 o governo de Florença, com a ajuda de
frei Jerônimo de Savanarola, cujos escritos demonstram a
ciência, a prudência e a virtude de seu ânimo,
fez-se, entre outras, para a defesa da segurança da pessoa
humana, uma lei que estabelecia a apelação para
o Tribunal do Povo das sentenças por crimes políticos,
proferidas pelo Tribunal dos Oito e pela Senhoria, lei esta cuja
aprovação havia custado a Savanarola muito tempo
e muitíssimo trabalho.
Pouco depois do início de sua vigência, condenou
a Senhoria à morte cinco cidadãos por delitos definidos
como de natureza política. Os condenados pretenderam apelar
para o Tribunal do Povo, e isso não lhes foi permitido,
numa clamorosa violação da lei.
Esse fato desprestigiou e desmoralizou profundamente Savanarola,
porque se o direito de apelação era uma garantia
legal, considerada justa e boa quando a promulgou, cabia-lhe o
dever de assegurar, de qualquer forma, o seu cumprimento.
Se a lei não era boa, não devia tê-la estabelecido,
muito menos com o empenho com que o fez. O assunto se tornou ainda
mais escandaloso, pelo fato de não haver nunca Savanarola
levantado a voz, em nenhum de seus sermões, contra essa
infração legal, com ela se acumpliciando pelo silêncio.
Não teve Savanarola a dignidade de censurar nem mesmo explicar
o gesto dos infratores, como se não quisesse censurar uma
coisa da qual teria tirado algum proveito pessoal. E como não
podia, de forma alguma, explicar as razões de sua omissão,
revelando com elas o teor de suas ambições pessoais
e de seu parcialismo, acabou por perder o crédito dos cidadãos,
arruinando gravemente sua reputação.
Outra coisa que traz imensos prejuízos ao Estado é
a prática de estar continuamente reacendendo e reavivando
as paixões entre os cidadãos, com perseguições
feitas a torto e a direito por motivos políticos, como
aconteceu em Roma depois do decenvirato.
Todos os decênviros e ainda outros cidadãos, uns
depois de outros, foram sendo acusados e condenados. O terror
da nobreza chegou a ser tão grande, que já todo
mundo suspeitava que não se pusesse termo àquele
tipo de perseguição, e que toda a aristocracia acabaria
sendo exterminada.
O estado de alarma tornou-se generalizado. O pânico tomou
conta de todas as camadas, em proporções tais que
ninguém pôde calcular suas consequências na
cidade. Foi preciso uma medida radical para resolver a perigosa
situação.
Essa medida foi tomada pelo tribuno Marco Duílio, que recorreu
a um remédio heróico: baixou um decreto pelo qual
ficava proibida a citação de qualquer cidadão
perante qualquer tribunal, pelo prazo de um ano. E só com
esse decreto se pôde tranquilizar a sociedade.
O exemplo serve para demonstrar até onde pode causar prejuízos
a uma República ou a um príncipe manter os cidadãos
em permanente sobressalto, expostos permanentemente a processos
e condenações que podem atingí-los de surpresa,
sem mais aquela.
Não há dúvida de que nada de mais pernicioso
pode acontecer a uma sociedade. Pois os homens que vivem incertos
de sua segurança pessoal sempre hão de procurar,
por qualquer meio, livrar-se desse perigo e dessa ameaça.
Com isso, há de aumentar-se a audácia de cada um
e há de crescer o atrevimento de uma insurreição
contra a ordem de coisas estabelecidas.
É, portanto, indispensável, não violar o
direito de ninguém, não lhe causar nenhum dano jurídico.
Seria até mais seguro para um governo eliminar de uma vez
o direito dos cidadãos, do que fazê-lo aos poucos.
E até pode-se eliminar de uma vez todos esses direitos,
num determinado momento, para depois restabelecê-los, de
modo a infundir a confiança no povo.
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Niccolò Bernardo di Machiavelli (1469-1527), o famoso
secretário florentino, deixou a obra politica mais importante do
Ocidente, exposta em diversos livros, dos quais o mais famoso é
"O Principe". Tratou de todos os aspectos da arte de governar, na
guerra e na paz. A moral maquiavélica, tantas vezes mal julgada,
se funda na defesa do Estado, como bem necessário ao individuo.
De certa forma, é o pai do Estado fascista, como do Estado socialista
filhos ambos que ele talvez não reconheceria. O texto que
hoje publicamos é de uma das obras menos conhecidas de Maquiavel,
os "Discursos sobre a Primeira Década de Tito Livio", em que extrai
lições de moral e de direitos propostos por aquele historiador romano.
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