MALEBRANCHE E O IMANENTE

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 27 de outubro de 1977

As coisas e os seres têm duas qualidades: a qualidade imanente e a qualidade contingente. Isto ocorre mesmo com seres e coisas que não são compostas, mas unas. Assim, sempre que se fala das qualidade, isto é, dos defeitos, das virtudes e da eficiência de uma coisa e de um ser, é necessário saber se se trata de uma qualidade imanente ou de uma qualidade contingente.
Incorre em grave estultícia quem profere um julgamento sobre uma qualidade de uma coisa, sem distinguir aquilo que é imanente daquilo que é contingente. Pois, como o próprio nome o indica, imanente, do latim "maneo-manere", é aquilo que permanece como qualidade inalterável, quer dizer "manet in", permanece dentro, segundo está claro na voz "in-manens"
A qualidade contingente é uma qualidade acidental, que pode ocorrer hoje e já não existir amanhã. Também aqui, basta o vocábulo para explicar claramente o sentindo da expressão. Pois contingente vem do verbo latino "tango-tangere", quer dizer, tocar com o tato. E assim "contingens-contingente" é aquilo que é tocado numa junção acidental de dois corpos, de duas coisas, de dois seres ou de duas idéias.
O imanente não pode nunca estar ausente da coisa. O contigente só ocorre episodicamente, por causas externas à própria coisa, e só existe em determinadas circunstâncias. E também só existe no momento em que existe, deixando de existir sem que se afete com isso a natureza da coisa, da qual o contingente não faz parte.
Quando se diz que um homem respira, afirma-se com isto uma qualidade humana imanente à vida física. Pois quando ele deixa de respirar, deixa também de estar vivo. A respiração é, assim, uma qualidade imanente do homem vivo.
Mas quando um homem está com o corpo ardendo em febre, não se pode dizer da febre que seja uma qualidade imanente, pois que o corpo vivo não precisa da febre para estar vivo. A febre é uma contingência, uma qualidade contingente no corpo.
Muitos exemplos podem ser dados, até nos rigoroso problemas de matemática, onde os próprios números têm verdades imanentes e verdades contingentes. Os que sabem a fundo essa disciplina e a especulam além dos problemas habitualmente propostos nas escolas, sabem que exprimir uma quantidade é uma virtude imanente dos números. Mas que a relação entre os números é uma virtude contingente.
Para formar uma exata noção da verdade, é preciso, pois, antes de tudo, distinguir o que é imanente e o que é contingente numa coisa. Se isto é fácil nos pequenos exemplos acima oferecidos, torna-se mais complexo quando se trata do entendimento das essências, das idéias, das categorias e das enteléquias.
Uma pessoa não pode merecer fé no que diz quando, ao afirmar a qualidade de uma coisa, não explica se está se referindo à qualidade imanente ou a alguma qualidade contingente. Pois então corre o risco de oferecer uma noção deformada, uma noção em vão ou uma noção mentirosa da coisa que pretende definir. Grave erro é não esclarecer, ao início do discurso em que se pretende qualificar as coisas, quais são suas qualidades imanentes e quais são suas qualidades contingentes, se as houver. Quem o faz inadvertidamente, melhor faria se ficasse calado, pois está falando levianamente. Quem o faz por esperteza ou habilidade retórica, passa a não mais merecer a fé dos que o ouvem, porque parece óbvio que está praticando uma astúcia enganosa.
Mais grave erro, porém, comete aquele que toma por qualidade imanente aquela que é contingente, e por qualidade contingente aquela que é imanente. Pois não está apenas enganando os outros. Está se enganando a si mesmo. E quem ensina a si mesmo erroneamente não tem direito nem a qualidade de se tornar instrutor e mestre dos outros. Induzido ao erro por sua própria incapacidade, estará praticando a insensatez a que se referem as Escrituras, quando ali diz o sábio: "Ai do cego que guia outro cego".
Na verdade, não pode um cego ser guiado por outro cego, sob o risco de caírem ambos no abismo ou na mal-aventurança dos tropeços do caminho. É, pois, preciso observar o máximo cuidado na definição das coisas, pois está é decisiva para o encontro da verdade. Os que sabem as matemáticas, por exemplo, cuja proteção é a alma e o sopro do estudo da física, sabem que não se constrói um argumento lógico sem antes discernir e entender claramente o que é imanente e o que é contingente em cada corpo. E isto é assim tanto na lógica formal, como na lógica matemática.

 


Malebranche-Nicolas Malebranche - (1638-1715) filósofo francês que Julian Marias e a crítica em geral consideram como o mais importante dos pensadores de seu tempo na linha cartesiana. Aos dezesseis anos começou a estudar a filosofa peripatética. Sua obra capital, 'La Recherche de la Verité", se funda em Santo Agostinho e Descartes. Recebeu ordens religiosas e manteve polêmicas teológicas e filosóficas contra Bossuet e Fénelon, contra os jesuítas e os jansenistas. Estudou a física, a geometria e a anatomia. Voltaire o propunha como modelo da boa e clara linguagem filosófica. É de uma de suas lições o texto que hoje publicamos.


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.