MAIMÔNIDES E O CONSUMO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 03 de fevereiro de 1978
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Todos
os males que afligem o homem podem ser classificados em três
tipos. O primeiro é o dos males que vêm da própria
natureza, aos quais o homem está sujeito, como todos os
serem que nascem e vivem expostos à corrupção.
Assim é, por exemplo, que alguns indivíduos são
atacados por enfermidades como a paralisia, desgraças que,
ou são congênitas, ou lhes sobrevêm por alterações
acontecidas em seu organismo, provocadas por elementos, tais como
a poluição do ar, os raios do céu e os rigores
do sol.
Aquele que, sendo de carne e osso, ao mesmo tempo proteger-se
contra todos os acidentes da matéria, está querendo
o impossível, pois, sendo matéria, pretende escapar
às condições da matéria. É
certo que os males desse tipo que acontecem aos homens são
menos numerosos do que poderiam ser. Com efeito, aí estão
as cidades que há milhares de anos escapam de inundações
e de incêndios. Aí estão milhares de homens
que nasceram e vivem perfeitamente válidos. Até
mesmo se pode dizer que um homem que nasce inválido é
uma exceção, não representando sequer a centésima
ou milésima parte dos que vivem num Estado.
Os males do segundo tipo são os que os homens causam uns
aos outros, como, por exemplo, a tirania que alguns déspotas
impõem aos seus semelhantes. Esses males são mais
numerosos do que os da primeira espécie, e suas causas
são múltiplas e bem conhecidas. Também decorrem
de nós mesmos, mas suas vítimas são em geral
impotentes para livrar-se deles.
Há, porém, uma coisa que, de certa forma, poderia
ser um consolo para o mal da tirania: em nenhuma cidade em que
ela se tenha instalado, sua duração consegue ser
muito longa, e as pessoas acabam se livrando dela. O mesmo se
pode dizer das violências que os homens desencadeiam entre
si, uns contra os outros. Pois é raro que um homem descubra
outro entrando de noite em sua casa para matá-lo ou para
roubar seus bens. Na verdade, os males praticados pelos homens
contra seus próprios semelhantes só encontram proporções
muito grandes, abrangendo grande número de pessoas, durante
as guerras. Mas os períodos de guerra são também
uma exceção na vida dos povos.
Os males do terceiro tipo são os que o homem provoca contra
si mesmo, o que é muito frequente. Estes males são
muito mais numerosos do que os do segundo tipo. Todos os homens
se lamentam dessa espécie de males, mas são muito
poucos os que se consideram culpados quando eles os atingem. Os
que são atingidos por esses males merecem uma censura.
Podemos dirigir-lhes aquelas palavras do profeta: "Isto foi
armado contra vós por vossa própria mão"
(Malaquias - 1 - 9).
A esse propósito, vale a pena lembrar a advertência
dos Provérbios: - "Por sua própria mão
estão se destruindo". Ou ainda a palavra de Salomão:
- "A estupidez do homem perverte seus caminhos". Em
outro lugar, igualmente, deixam claras as Escrituras que é
o próprio homem que atrai contra si essa espécie
de males: "Na verdade, descobri que Deus criou os homens
justos e eles é que se tornaram depravados por seus pensamentos
ruins" (Eclesiastes - VII - 29). E Jó, do fundo de
seus sofrimentos, exclama que "a desgraça não
surge da poeira e os tormentos não germinam no chão".
Esse espécie de males decorre de todos os vícios:
da gula, da incontinência diante da bebida e do amor físico,
coisas que não podem ser gozadas senão com regularidade
e sem excessos. Outros males decorrem da pobreza imposta pela
justiça, com o consumo insuficiente de alimentos ou de
alimento maus, provocando as enfermidades do corpo que, muitas
vezes, provocam também a enfermidade da alma. Pois as enfermidades
da alma estão intimamente relacionadas com as enfermidades
do corpo. Além disso, a alma se acostuma com as coisas
não necessárias e se familiariza com seu consumo,
de modo que se escraviza ao hábito de desejar o que não
é necessário nem para a conservação
do indivíduo nem para a conservação da espécie.
E isto é tanto mais grave, pois das coisas necessárias,
a gente se sacia. Mas o desejo de coisas supérfluas não
tem limite. A pessoa começa desejando tê-los de outro.
Uns começam pelo cristal, e acabam cobiçando as
coisas de esmeralda e de rubi.
Dessa forma, todo indivíduo ignorante e tolo está
constantemente aflito e triste porque não pode entregar-se
ao luxo de que desfruta algum conhecimento seu. E se expõe
a grandes perigos, até a serviço dos reis que buscam
luxos inúteis. E em vem de queixar-se de si próprio,
queixa-se de Deus ou da fortuna, que não lhe deram riquezas,
bebidas abundantes e concubinas vestidas de ouro e pedras preciosas.
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Maimônides
- Mose Bar Maimon - é o mais importante dos filósofos
judeus da Idade Média. Espanhol como Avicebron, nasceu em
Córdoba em 1.135 e morreu no Cairo em 1204. Durante a perseguição
moura na Espanha, errou durante doze anos pelo país, entre
os 13 e os 25 anos de idade, para não converter-se ao Islão.
Exerceu a medicina no Cairo e frequentemente lutou com dificuldades
econômicas. Sua obra filosófica mais importante se
intitula "More Newuchin", em latim "Dux Perplexorum",
isto é "Guia dos Perplexos", do qual é o
texto que hoje publicamos, vertido diretamente do latim por Gerardo
Mello Mourão..
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