LOCKE E O PODER

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 27 de outubro de 1977

É preciso distinguir entre a dissolução da sociedade e a dissolução de governos. Aquilo que faz uma comunidade e traz os homens do estado natural para uma sociedade política (ou civil) é a concordância entre todos para agir como um corpo único.
O meio usual para dissolver esta união consiste na intromissão de um governo estrangeiro. Com a conquista do poder pela força externa, os homens voltam ao estado natural e cada um providencia sua própria segurança. Quando uma sociedade é dissolvida, seu governo acompanha-a.
Governos também podem ser dissolvidos por forças internas. Isto ocorre quanto o Legislativo é alterado. A sociedade civil, sendo um estado de paz acordado entre seus participantes, depende do Poder Legislativo para sua continuidade, pois é lá que os membros da comunidade combinam juntos uma forma de vida. É a alma que dá sentido e unidade à congregação humana. O estabelecimento de um Legislativo é o ato fundamental de uma sociedade e a partir do qual é feita uma provisão para a continuação da união sob a direção de pessoas e regulamentos escolhidos e autorizados pelo povo. Sem este consentimento ninguém tem autoridade para compor leis para servir ao coletivo.
Quando alguém assume o poder de fazer leis sem a devida autorização popular, produz leis sem autoridade e, portanto, sem força para serem seguidas e obedecidas. Nestes casos, deve-se formar um outro Legislativo que possa resistir àqueles que usurparam o direito de fazer leis.
Existe ainda uma outra forma de dissolver governos: é quando o próprio Legislativo ou o príncipe reinante agem contrariamente à confiança neles depositada. Um Legislativo perde a confiança quando permite a invasão da propriedade dos cidadãos ou quando se converte, arbitrariamente, no dono das vidas, liberdades e fortunas do povo.
A razão que leva os homens a ingressar numa sociedade é a preservação da sua propriedade (como propriedade compreendam-se destino, vontades e posses). A finalidade do procedimento de escolher um corpo legislativo é a de permitir que sejam feitas leis e regras que funcionem como guardiães das propriedades de todos os membros da sociedade, limitando o poder e moderando o domínio de qualquer parte ou grupo. É impossível supor, portanto, que uma sociedade deseje destruir aquilo que ela erigiu para defendê-la. Assim, quando legisladores se dispõem a destruir a propriedade dos cidadãos ou pretendem reduzi-los à escravidão sob seu poder arbitrário, colocam-se em estado de guerra contra o povo que, destarte, fica livre de qualquer obediência, podendo abrigar-se no refúgio comum que Deus concedeu aos homens contra a força e violência.
O que se disse acima sobre a quebra de confiança dos legisladores também é verdade no que concerne ao supremo executor de uma sociedade, preso a um duplo compromisso - de legislar e de comandar a execução das leis. Ele age contra esta delegação de confiança quando, porventura, emprega a força, dinheiro e ofícios do cargo para corromper representantes e conquistá-los para seus desígnios.
Ao poder da vontade da maioria pode ser contraposta a alegação de que o povo, sendo ignorante e sempre descontente, não pode ser encarregado de formar um governo. A instabilidade dos humores e opiniões do povo seria a ruína dos governos. Alega-se também que se o povo tem o direito de formar um novo Legislativo toda vez que o Legislativo original trai sua confiança, nenhum governo seria estável e contínuo.
A isto responde-se: ocorre justamente o contrário. O povo não é tão facilmente levado a sair das suas formas tradicionais. Esta lentidão e aversão popular para abandonar as Constituições tem sido as responsáveis pela estabilidade da Inglaterra no decorrer de suas inúmeras revoluções.
A possibilidade de o povo corrigir seus legisladores escolhendo novos representantes é o melhor remédio contra rebeliões. Quando os homens, escolhendo uma sociedade civil, escolhem meios legais de trocar legisladores estão, ao mesmo tempo, abdicando da força e da violência. "Rebellare" significa trazer de volta o estado da guerra, onde não existe ordem nem leis. Trocar legisladores e executantes é um meio que a sociedade tem para defender-se e mudar, sem abrir mão dos regulamentos e do acordo universal.

 


John Locke (1632-1704) pensador inglês do grupo empirista, é considerado a mais importante figura do sistema da democracia de direitos naturais. Seu "Segundo Tratado de Governo" desenvolve uma teoria onde o governo está baseado num contrato social . Influenciou grandemente a escola liberal francesa e norte-americana. O texto acima foi extraído da obra citada (escrita em 1690), na parte referente à dissolução de governos, utilizando-se versão original publicada pela Random House (EUA). Escreveu ainda: "Carta sobre a Tolerância" e "Ensaio sobre o Entendimento Humano".


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