LAWRENCE E A MULHER

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 28 de abril de 1978

Como nenhum homem e mulher nenhuma podem obter um companheiro perfeito, nem conseguir completa satisfação em todos os tempos, cada homem, de acordo com sua necessidade, deve temer um Deus, uma idéia, que o obrigará ao movimento de seu próprio ser. E por isso, ao estar com sua mulher, poderá o homem estar ao mesmo tempo com Deus, e assim melhorar sua alma. Ou pode, também, ter intimidade com Deus, sem sua mulher, e até contrariamente a ela.
Todo homem busca na mulher o que é estável, eterno. E se, sob o impulso do homem, isto se destrói nela, nessa mulher em particular, de modo que já não será o eixo para seu cubo, mas, ao contrário, se verá distanciada de si mesma, o homem deveria buscar sua estabilidade noutra parte, tomando-se como centro de si mesmo.
Então deverá buscar outra mulher, ou tratará de tornar consciente seu desejo de encontrar um símbolo, de criar e definir em sua consciência o objeto de seu desejo, para poder tê-lo à sua vontade, para sua completa satisfação. Ao proceder assim, busca com seu desejo a mulher em outra parte, e não a certa mulher em particular. Como que tudo o que é, é macho ou fêmea ou ambas as coisas, quer se trate das nuvens ou do sol, das colinas ou das árvores, ou de uma pluma caída de um pássaro, também o homem busca seu complemento em outras coisas. E deve chamar sempre finalmente a Deus, o indizível, o inexpressível e o
incognoscível, porque se trata de seu complemento irrealizado.
Mas todos os deuses têm vários atributos em comum. São o absoluto inexpressado: eterno, infinito, imutável. Eterno, infinito, imutável: o supremo Deus de toda a humanidade é este. E o homem é impulsionado ao pensamento pelo descontentamento ou a insatisfação, assim como da fricção nasce o calor. O consciente é o mesmo esforço no homem e na mulher para obter uma perfeita interação sem fricção, perfeita com o Nirvana. É o reflexo do macho e da fêmea em seu movimento dual. Sendo um reflexo do movimento dual, o consciente contém os dois em um, e é, portanto, o absoluto em si mesmo.
O desejo é o reconhecimento da imperfeição. E a encarnação do objeto do desejo revela o defeito ou a culpa originais. De modo que os atributos de Deus revelarão o que faltou ao homem e o anelou em seu viver. E esses atributos são sempre, em sua essência, o eterno, o infinito, o imutável.
E essas são, em princípio, as qualidade que o homem adivinha em sua mulher. Caminhe um homem sozinho sobre a face da terra, e se sentirá como grão de poeira solto no ar, levado ao azar. Tenha uma mulher à qual corresponde sua própria pessoa e sentirá como se tivesse um muro em que apoiar-se, mesmo que a mulher seja mentalmente estúpida.
Nenhum homem pode suportar o sentido do espaço, do caos, em seus quatro costados. Isto o enlouquece. Deve estar em condições de colocar-se de costas contra a parede. E esta parede é sua mulher. Dela, obtém um sentimento de estabilidade. Ela lhe proporciona o sentimento de imutabilidade, da permanência, do eterno. É ele mesmo uma furiosa atividade, uma poderosa mudança de outro. Não se atreve sequer a conceber-se a si mesmo, salvo quando se sente seguro da mulher que está permanentemente sob sua mão, ao seu lado. Não se atreve a saltar para o desconhecido, senão com a segurança da estabilidade da firmeza de sua mulher. Como uma roda, se um homem gira sem seu eixo, seu movimento forma uma vagabundagem sem sentido.
De modo que o temor de um homem é sempre não encontrar um eixo para seu movimento, mulher nenhuma em que possa concentrar sua atividade. E o temor de uma mulher é sempre não poder encontrar um cabo para sua estabilidade, um homem que converta em movimento sua plena estabilidade. Ou essa mulher desfalece diante da pressão do homem, torna-se errática, sem freio e sem centro, ou então o homem é insuficientemente ativo para realizar o princípio estático de sua mulher.
A vida consiste, por isso mesmo, na forma dual da vontade do movimento e da vontade de inércia, e tudo o que vemos e sabemos é o resultado dessas duas vontades. Mas a vontade única, da qual ambas são formas duais, é por ora inconcebível.
Conforme predomine na raça a vontade de movimento ou a vontade de inércia, a concepção racial da vontade única terá que ampliar os atributos que faltam ou escasseiam na raça. Já que nunca se pode encontrar um equilíbrio ou um acordo perfeito de ambas as vontades, uma vez que uma delas sempre triunfa sobre outra na vida, de acordo com nosso conhecimento, o esforço humano deve tender sempre a recuperar o equilíbrio, a simbolizar, e, portanto, a possuir o que falta: o esforço religioso do homem.
Parece existir uma separação, uma diferença insuperável e fundamental entre o esforço artístico do homem e seu esforço religioso. Ambos os esforços estão confundidos tais como se revelam, mas continuam sendo dois, não um, são separados, individuais, nunca compostos. O esforço é para conceber, para simbolizar o que falta à alma humana ou a à alma da espécie, o que não existe, e o que ela requer e anela.


D. H. Lawrence -(1885-1930) foi o grande romancista inglês que rompeu as estruturas da novela de seu país, colocando o amor e a força erótica como centro vital. Seu primeiro livro nesta linha, "Sons and Lovers", foi uma pedra de escândalo para a pudibunda sociedade inglesa. O escândalo foi maior com "Lady Chatterley's Lover", que despertou as iras da censura, iras que acompanharam o autor até a morte. Seus poemas trazem a mesma carga primitiva e elementar de vigor erótico - não se devendo confundir, como adverte Malraux, a pureza do erótico com a pequenez do obsceno. Seus escritos filosóficos recolocam, igualmente, em suas raízes sagradas, os valores eróticos, como é o caso de seu belo livro sobre a Etrúria, do volume de ensaios "Phoenix", de grande importância no pensamento filosófico de nosso tempo, e do qual é o texto que hoje publicamos.


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