LASKY E A LIBERDADE
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 1977.
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A
perseguição, por impiedosa e cruel que seja, não poderá reprimir
por muito tempo a manifestação de uma verdade importante. Se os
princípios proclamados por alguns correspondem à experiência de
numerosos indivíduos, aqueles que reconhecerem neste princípios
os frutos de sua própria experiência os reafirmarão inevitavelmente.
A característica histórica da perseguição tem sido sempre degradar
o perseguidor e fortalecer a causa das vítimas, atraindo as atenções
para as suas reivindicações.
Somente existe uma maneira de agir em face das inovações: é procurar
compreendê-las, e o único meio de neutralizar as reivindicações
é buscar um remédio que possa curar os males apontados. Recusar
às idéias novas ou às reivindicações o direito de se exprimir
é suscitar, para o futuro, uma confirmação certa das verdades
que elas encerram.
Cada geração é obrigada, segundo parece, a aprender de novo tais
princípios. Não somos tolerantes em um domínio, senão para sermos
intolerantes em outros. Não o somos em questões religiosas, senão
para deixarmos de sê-lo em assuntos políticos; ou se o somos nos
problemas, cessamos de sê-los no campo dos interesses econômicos.
Cada geração descobre que a liberdade é especialmente importante
sob um ponto de vista determinado, e é sempre sob este ponto de
vista que, ainda uma vez, é preciso aprender a lição.
Cada geração cria um ídolo à sua própria imagem e sobre o altar
deste ídolo sacrifica a liberdade daqueles que se recusam a adorá-lo.
Em última análise, esta recusa é baseada sempre no mesmo motivo:
pretende-se que as doutrinas ou práticas condenadas são de natureza
a perturbar profundamente a ordem civil.
A intolerância pode ser atitude dos católicos, quando afirmam
que a unidade de crença é essencial para conservação da sociedade,
como pode ser a atitude dos protestantes, quando, como Calvino
e os socinianos, sustentam que a natureza blasfematória do credo
anatemizado destrói o respeito sobre o qual se ergue a sociedade.
O perseguidor acredita sempre monopolizar a verdade, e que a estará
traindo se permitir que seja posta em dúvida e discutida. Pode
então permitir-se o duplo luxo de manter sua própria autoridade
e ajudar os perseguidos se eles consentem em abjurar a heresia
e regressar ao seio da "sua" verdade.
Quando os atentados à liberdade se produzem no campo político
e econômico, são os seus motivos, mais que a sua natureza, que
mudam. Uma concepção política exerce nos seus adeptos a mesma
influência da religião; os entusiastas de Moscou ou os de Roma
diferem apenas nos objetivos do seu culto. Um sistema econômico
defende-se exatamente do mesmo modo; os fiéis ao marxismo, na
sua forma extremada, jamais duvidaram, um só momento, do seu direito
de impor suas convicções aos recalcitrantes, mesmo à custa de
derramamento de sangue. Em um estado constitucional, como a América,
intitula-se a supressão da liberdade de repressão à licenciosidade;
numa ditadura, como de Moscou, ela é denominada resistência às
falsas concepções "burguesas". O esforço de demonstração concentra-se
sempre na necessidade de uma unidade artificial, cuja manutenção
é necessária aos objetivos daqueles que detêm o poder. E, entanto,
pode-se sempre sustentar, em confiança, que a única resposta adequada
a um princípio que pleiteia o apoio das massas é a prova racional
de que este princípio não é verdadeiro. Pode-se mesmo pretender
que o mundo seria mais feliz se esta fosse a teoria geral da base
das atividades sociais. A civilização está pontilhada das ruínas
de sistemas que, outrora, os homens consideraram excelentes: sistemas
em nome dos quais a liberdade foi reprimida e muitos sofrimentos
foram causados inutilmente. Um exame atento da História demonstra
que o direito à liberdade é sempre ameaçado quando as consequências
são suprimir algum privilégio. E por isto é que a igualdade é
um objetivo desejável do esforço social; seu desenvolvimento é
de natureza a tornar mais raros os atentados contra a liberdade
e mais terríveis as consequências de tais atentados.
Em nenhum indivíduo o amor à justiça é suficientemente forte para
que ele renuncie ao direito de punir em nome do credo que professa;
e o meio mais simples para que ele conserve esse senso de justiça
é suprimir os interesses em nome dos quais ele se convence do
seu direito de punir.
O ceticismo é talvez um dissolvente do entusiasmo; mas o entusiasmo
sempre foi um inimigo da liberdade. A atmosfera necessária para
nela se tornar real a felicidade das massas é aquela em que tudo
há a ganhar com a divulgação e a interpretação dos fatos. Esta
atmosfera é a condição da liberdade; sua qualidade é proporcionar
mais luz que calor; pois a luz permite a discussão. O que é impossível
com homens dominados pela paixão. Ora, nada é mais propício a
provocar paixões que a convicção gerada nos indivíduos de que
serão intimados a renunciar a certos privilégios.
O meio, pois, de garantir a liberdade é organizar a sociedade
de modo que não existam privilégios e sacrifícios. Esta argumentação
em favor da liberdade é baseada, em suma, numa consideração muito
simples: o mundo terá tanto mais possibilidades de ser feliz,
quanto mais se opuser a que suas instituições se organizem sobre
bases de injustiça. E as instituições são necessariamente injustas
se, de um modo constante, se inspiram na maioria dos sentimentos
de ódio e de inveja. Existe alguma coisa de falso em um sistema
que, como o nosso, se mantêm aparentemente organizado sobre bases
de razão, mas, na realidade, vivendo sobre uma base de paixão.
Enquanto assim acontecer, em nossa sociedade, continuaremos a
contestar a verdade dos princípios que negam a justiça da atual
distribuição das forças sociais. Estes princípios podem muitas
vezes ser falsos, mas representam muitas vezes também a certeza
do futuro. É sempre um ato perigoso reprimir um ideal que pretende
ter a suas raízes nas experiências humanas. Porque nunca uma reivindicação,
apoiada por número considerável de indivíduos, permitirá que a
reduzam ao silêncio: combaterá em defesa de seu direito de se
fazer ouvida, qualquer que seja o preço da luta.
Tentamos demonstrar que um conflito desta ordem, por via de regra,
nem sempre é fatal, mas que frequentemente é perigoso. Afirmamos
repetidamente que a verdade não pode ser estabelecida senão pela
razão, e tão-somente por ela, e que afastar-se dos processos da
razão para fazer triunfar uma convicção é confessar que se deseja
proteger uma injustiça. O respeito à razão importa no respeito
à liberdade: e somente o respeito à liberdade pode proporcionar
beleza à existência humana.
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Harold
Lasky (1893-1950), pensador e político inglês, considerado o
teórico do Partido Trabalhista inglês. Professor de Economia política,
desde 1936 fez parte do birô político do partido, chegando a ser
seu principal orientador ideológico quando este foi levado ao poder,
depois da 2ª Guerra. Autor de mais de 20 obras doutrinárias, articulista
(republicado mundialmente, inclusive no Brasil). Seu livro mais
importante foi "Reflexões sobre a Revolução da Nossa Época". De
"A Liberdade" foi extraído o texto acima. Trad. Pinto de Aguiar,
Editorial Progresso, Salvador).
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