LANDESBERG E A MORTE

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 15 de março de 1978

A vida terrestre é uma vida mortal. A temporalidade dessa vida é de tal ordem que nenhuma presença verdadeira pode constituir-se nela. A cada instante, o mundo se arruina. O instante morre ao nascer. O passado devora o futuro, antes que uma existência presente se possa realizar duradouramente. O instante, o único lugar e a única chance terrestre da presença e, pois, única chance possível de uma existência, desliza no tempo e pelo tempo. "Ex illo quod nondum est, per illud quod spatio caret, in illud quod jam non est".(Daquilo que não é, por aquilo que não dispõe de espaço, naquilo que já não é. N.T.).
Não há um tempo. O que há são os três tempos e essas três faces inseparáveis - "sunt in anima tria quaedam" - como três coisas numa só alma. Correspondem às três forças da alma, "memoria, contuitus, exspectatio" - memória, intuição e expectativa. A análise do tempo que Santo Agostinho nos dá no XI Livro das "Confissões", embora fortemente influenciada por Plotino, é única na filosofia européia. É, sobretudo, uma análise ontológica deste mundo terrestre caracterizado por sua temporalidade, ao mesmo tempo que uma análise de sua constituição metafísica.
A inquietação da alma tende infatigavelmente para o futuro e produz, a cada instante, um passado, ultrapassando imediatamente o presente. Essa inquietação e essa insensibilidade não se encontram apenas na base de nosso sentimento do tempo, mas viciam a própria raiz da constituição desse mundo enquanto mundo (saeculum), e provocam, por isso mesmo, a mobilidade do tempo.
O tempo, conforme parece mover-se do passado através do presente em direção ao futuro, esse tempo somos nós mesmos, pois não participamos da eternidade. Enquanto a eternidade, sendo ao mesmo tempo estabilidade e pura presença, é idêntica a Deus. A intenção faz a eternidade, ao passo que a distensão da alma humana, por uma diminuição do ser, marca a passagem da eternidade durável e pura da presença, no tempo mortal deste mundo.
Por isto é do fundo de nossa inquietação que surge a mortalidade, uma íntima particularidade nossa, imanente e perpétua, fruto e punição do pecado. Em momento algum de sua vida, nossa pessoa pode existir sem, por um lado, carregar consigo uma lembrança e, por outro lado, sem carregar também uma esperança. A cada instante o homem se separa de alguma coisa, porque a cada instante parte para um novo encontro.
Cada partícula da vida temporal contém ao mesmo tempo a morte e a tendência da luta contra a morte. "So leben wir und nehmen immer Abschied" (Assim vivemos e não nos despedimos nunca - Rilke - "Elegias de Duino". NT.).
O tempo cristão, tal como o interpreta Santo Agostinho, é o tempo da alma que procura sua existência procurando seu Deus. "Quia fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum donec requisescat in Te". (Porque nos fizeste para Ti e nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Ti - Santo Agostinho. N.T.).
Heráclito, Platão e os platônicos tinham já meditado sobre a fugacidade do mundo e a tinham interpretado ontologicamente de um modo mais "objetivista", mais análogo. Para o cristão, todavia, existe, do lado da eternidade, não somente um mundo de idéias, mas existe uma pessoa que é o Ser absoluto - pessoa que, por sua graça, fazendo o homem participar de sua eternidade, pode determinar a formação do homem pela liberdade do amor sem limites, manifestado na encarnação.
A participação do homem na eternidade da pessoa divina não se realiza integralmente senão além da morte, e de tal maneira que a morte se torne um nascimento superior ao nascimento empírico. Se há uma vida que é em verdade a morte, há uma morte que é verdadeiramente a Vida. A condenação aparece, então, como a única morte verdadeira, a única morte eterna, porque ela é a privação definitiva da fonte da vida, a perda definitiva da possibilidade de uma participação com ela.
Os santos que morrem nascendo para a visão beatífica chegam à vida eterna, à presença divina, que é a única presença verdadeira. A pessoa espiritual do defunto não se aniquila: adquire uma existência definitiva na morte ou na vida, no inferno ou no céu. O justo alcança a participação do ser; o condenado sofre a morte com o Diabo que, ele mesmo, não tem senão uma falsa imortalidade, porque sua condição é a morte. Lúcifer morre infinitamente - por não morrer com o Cristo, assim como Ahasverus (o judeu errante), o da lenda, morre, longamente, mas não infinitamente.
Essa dialética deve nos interessar aqui porque ela corresponde à própria realidade da experiência cristã e tende a um esclarecimento radical dessa revolução de valores que nela se contém. Ela prolonga e explica a vida cristã, como a dialética platônica prolongava e explicava a vida filosófica iniciada por Sócrates e continuada pela Academia.


P.L. Landsberg (1900-1944) oferece, em sua vida e em sua obra, um dos mais dramáticos testemunhos dos pensamento filosófico de nossos dias. Sua filosofia, de linhagem platônica, passando por Plotino e Santo Agostinho, ocupa-se dos mesmos valores que fundaram o existencialismo alemão e as indagações de Kierkegaard. A finalidade do homem e do mundo poucas vezes terão sido tão desesperadamente buscadas como em sua obra. Judeu, estava fortemente aderido ao pensamento cristão. A idéia da morte o perseguia a tal ponto que dele se conta que trazia sempre consigo, durante anos, um pequeno frasco de veneno. Durante a perseguição nazista, solidário com os de sua raça, entregou-se a um campo de concentração, onde não chegou a usar seu vidro de veneno. Mataram-no. O texto que hoje publicamos é de seu "ensaio sobre a Experiência da Morte".


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