KORNBERG E A CIÊNCIA

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 31 de janeiro de 1978

George Sarton, um eminente historiador científico, escreveu em 1930: "O conflito mais funesto de nosso tempo é a divergência de opiniões ou pontos de vista entre os homens de letras, historiadores, filósofos e os chamados humanistas de um lado, e os cientistas de outro". Em 1963, Theodore Von Laue, professor de História da Universidade de Washington, denunciou essa lacuna como inevitável, e disse "Falando, não como cientista, insisto em que a ciência, na metade do século passado, transformou-se de pesquisa filosófica e acadêmica, num esforço político e social para denominar o homem e a natureza. Em seu novo papel, é uma força perigosa e destrutiva. A colaboração primitiva e relativamente fecunda entre a ciência e a sociedade chegou ao fim. As novas relações são fatais, tanto para a ciência como para a sociedade".
Penso que compreendo o professor Von Laue. Sob alguns aspectos, eu também sinto falta da paz, da lentidão e da tranquilidade dos primeiros tempos da ciência. Mas não é possível voltar atrás. Enquanto o homem tiver a mente livre para pensar, e liberdade para construir, as armas e os meios científicos serão usados. O problema, agora, é tirar o máximo da ciência.
Tenho esperanças de que a ciência será usada para o bem, por três razões: em primeiro lugar, espero que a atual revolução biológica tenha introduzido um novo tema: as moléculas do homem. Esse tema poderá tornar-se a ponte milagrosa sobre o abismo, entre a cultura humanística e a científica.
Pela primeira vez, na história de nossos dias, físicos, químicos e biologistas descobriram, nos processos de hereditariedade, problemas que fascinam todos eles e que podem ser discutidos numa linguagem comum. A multiplicidade da ciência, já deplorada por Maxwell, no século passado, agrupou-se, de modo visível, à volta da proposição moléculas e genes.
Acontece que essa área da ciência está também intimamente relacionada com o homem e a sociedade. E torno a insistir que os fatos básicos da hereditariedade e o que podemos conseguir desses acontecimentos, podem ser compreendidos e discutidos por leigos e cientistas, numa linguagem comum. Por duas vezes já, na história da civilização ocidental, os cientistas-filósofos, humanistas e políticos, encontraram terreno comum para amplas discussões intelectuais. Foi na Idade de Ouro de Péricles e na Renascença. Vejo a possibilidade de um novo período de luz, no qual começamos a compreender as bases moleculares da natureza humana.
Minhas últimas experiências encorajaram-me a falar com repórteres de jornais e ler seus relatos sobre nossas descobertas, nossos receios e aspirações. O público está começando a ouvir e a compreender. Não seria possível, através de um conhecimento progressivo, de moléculas, genes e proteínas, chegar a uma compreensão mais profunda de nosso sistema nervoso e de nosso comportamento? Se assim for, poderemos mesmo aprender como nos conservar, pela maior parte do tempo, satisfeitos e tolerantes.
A segunda razão de meu otimismo é que tanto os cientistas como os leigos estão desenvolvendo uma compreensão melhor das operações científicas. Estão cientes de que o segredo do sucesso na ciência não reside em seus heróis. Homem algum pode mudar o curso da ciência moderna. Na melhor das hipóteses, ele pode avançar uma área, por alguns anos. O segredo da ciência está em nossa capacidade como homens, e como uma sociedade, de sustentar a prática e a cultura da ciência. Sabemos que os cientistas têm as mesmas fraquezas que os demais mortais.
A terceira razão de minha confiança no futuro é que não há outra alternativa lógica. O alvo de um comum entendimento na ciência está certamente além de nosso alcance. De qualquer forma, o essencial não é atingir um objetivo, mas, antes, ser dirigido em sua direção. O movimento para se alcançar o objetivo de uma linguagem comum e uma compreensão comum da ciência, unirá os povos e as nações, em vez de separá-los.
O problema é como alcançar tais objetivos. Um dos caminhos será através da ação política em âmbito nacional e local. Outro, poderá ser através de nosso sistema educacional, particularmente em nossas universidades. Precisamos sustentar e fortalecer todos os departamentos das universidade. A mente da juventude não é um receptáculo a ser preenchido por fórmulas eficazes. É a chama que deve ser acesa, e este é um dever que temos a cumprir. Até porque qualquer invenção pode ser usada para o bem e para o mal. O fogo, a roda, a pólvora, a energia nuclear são conquistas que nos servem. Mas que também podem nos destruir.


Arthur Kornberg (1918 - ) recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1959, por pesquisas realizadas numa escola da Universidade Washington, em Saint Louis, Missouri. O mundo cientifico, mais tarde, foi surpreendido pelo trabalho que, justamente com um colega, desenvolveu na Universidade de Stanford, produzindo artificialmente, pela primeira vez, a essência ativa e infecciosa de um vírus. Suas investigações sobre os princípios básicos da vida, como a do pioneiro alemão Max Delbruch, representam passos dos mais ousados dados pela humanidade no caminho da descoberta das origens. Como cientista puro, Kornberg busca as raízes da ciência no pensamento puro, no puro humanismo, como os mestres da filosofia grega. É de um texto seu sobre a revolução biológica o fragmento que hoje publicamos..


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